Pandemia de Covid-19 no Amazonas, algumas reflexões

Por Gleice Oliveira.

A situação trágica que vivemos em Manaus é o resultado de uma política construída ao longo de anos e com um tremendo agravamento do processo no período mais recente da nossa história em função da política neoliberal implementada por Bolsonaro, capacho do capital, tais como o sucateamento do SUS e demais serviços públicos, sucessivos cortes nos diversos setores, com maior profundidade na Saúde, Educação, Ciência & Tecnologia e ganha dinâmica ainda mais acelerada com a pandemia.

É simbólico o fato de que somos um estado continental, com 62 municípios e APENAS no município de Manaus, por ser a capital, existem Unidades de Tratamentos Intensivos-UTIs. Junte-se a isso a pauperização crescente da classe trabalhadora em geral, mas com elementos ainda mais agravantes dos setores miserabilizados das periferias das cidades, com elevados índices de desemprego, precarização do trabalho de enormes contingentes populacionais que sobrevivem de atividades informais e irregulares, desprotegidos de qualquer legislação trabalhista. Junte-se ainda a falta de urbanização e ausência de política habitacional que atinge a marca de 53% da população de Manaus vivendo em condições de moradia precárias, o que o IBGE chama de aglomerados subnormais, as palafitas, favelas, invasões, etc. Esse fato agudiza o drama da poluição e morte dos igarapés que cortam as cidades amazonenses. Também registro o problema da desigualdade no acesso a serviços de saúde e a existência de um sistema de transporte coletivo sucateado e caro.

Corroborando com esse quadro, do ponto de vista econômico o estado se sustenta quase que exclusivamente no Polo Industrial de Manaus – PIM, que segue existindo porque suas empresas recebem isenções pra lá de significativas, mas paga salários miseráveis, não investem sequer no asfaltamento das ruas do próprio Distrito Industrial onde estão instaladas e saem de Manaus a qualquer momento como fez recentemente a empresa Soni, agravando o já elevado índice de desempregados na cidade.[1]

A corrupção está profundamente arraigada em todos os níveis de governo há décadas e a subserviência e vassalagem ao empresariado e burguesia em geral é vergonhosa e indignante. São muitos os elementos que se somam formando um caldo de cultura perfeito para a proliferação do Covid-19.

“Pesquisa da Universidade Federal do Amazonas e da Fiocruz-Amazônia aponta que Manaus vive na verdade uma “SINDEMIA”, que é quando o contexto social e econômico são agravantes e provocam situação fora de controle. “Os dados apontam para o fato de que a Covid-19 em Manaus tem relação com desigualdade social” [2]

A pandemia chegou a Manaus, como no restante do país, e encontrou campo fértil que se aliou a ausência de uma política real de enfrentamento e caminhou a passos largos para os municípios do interior do estado, chegando inclusive a territórios indígenas. Ainda bem que muitos povos se auto isolaram, mas existem registros de contaminação feitas até por militares e funcionários da própria FUNAI que foram deslocados para áreas indígenas sem testagem e medidas de proteção que resultaram na infecção, adoecimento e morte, como foi o caso do povo Kanamary do Vale do Javary, mas além deles muitos outros tiveram várias baixas por histórica falta de imunidade e repetido processo de genocídio que nunca chegou a parar definitivamente. Felizmente temos notícia de que o povo Ashaninka[3] que se auto isolaram não têm registro de contaminados ou mortos.

A política adotada por Bolsonaro em nível nacional, e implementada a fundo por Wilson Lima governador do Amazonas e Arthur Neto prefeito de Manaus até o final do ano e desde o início de janeiro por David Almeida, foi a de buscar convencer e até impulsionar as pessoas a se contaminarem para que “naturalmente” se formasse uma imunidade coletiva, o que nunca chegou a acontecer, pois a imunidade dura apenas de 3 a 5 meses período em que a pessoa pode se contaminar por um vírus de outra linhagem e após o período curto de imunidade pode se reinfectar com o mesmo tipo de vírus. Ou seja, investiram em uma teoria furada, que conscientemente desconsiderou o elevadíssimo quantitativo de perda de vidas e também de sequelados. Trocando em miúdos, uma política criminosa que resultou em mais de 303.586casos e 10.359 mortes que poderiam e deveriam ter sido evitadas. Dados do dia 19.02.2021 (ver tabela)[4]

Chama atenção o fato de que os cinco maiores índices de vítimas fatais estejam registradas justamente em países cujos dirigentes, desde o primeiro momento da pandemia, adotaram posturas NEGACIONISTAS: Bolsonaro e Wilson no Brasil e Amazonas, México com Lopes Obrador, Índia com o primeiro-ministro Narendra Modi e Boris Jonhnson no Reino Unido (ver tabela)[5]

Em Manaus o vírus encontrou condições favoráveis para o seu crescimento e mutação numa dinâmica acelerada e pra isso muito contribuiu e segue contribuindo a negação de dados, alertas e recomendações científicas e o total desrespeito governamental, começando pelo próprio presidente da república, às medidas preconizadas pela OMS de testagem massiva, isolamento social, uso de máscaras e higiene.

No decorrer da 1ª onda, com muitas denúncias e pressão dos movimentos sindical, social e popular, chegaram a ser montados 2 hospitais de campanha – um do estado e outro do município, mas a sede de lucro e a ganância das elites junto com seu vassalo-mor no governo, não permitiram investimentos em campanhas educativas ou testagens e avançaram nos recursos públicos comprando falsos equipamentos superfaturados. Não houve um isolamento efetivo e o resultado foi avassalador com os hospitais superlotados, filas nos cemitérios para enterrar os mortos a tal ponto que o prefeito chegou a ordenar enterros coletivos, o que gerou uma onda de reclamações e denúncias da população e da imprensa nacional e internacional de modo que Arthur Neto, prefeito naquele momento, recuou.

O índice de contaminados, hospitalizados e mortos estabilizou, mas bem no alto. Quando isso ocorreu, em setembro/2020, a primeira providência do governador Wilson Lima foi decretar o retorno do trabalho presencial na rede privada e na rede pública estadual de ensino o que representou um debacle no já bastante frágil isolamento social, colapsando os hospitais públicos e é aí que começa a ser construída a 2ª onda. O governo recebeu uma enxurrada de críticas e demandas por parte do movimento sindical e também de organizações de mães e pais, mas com a opinião pública dividida, o máximo que conseguimos foi que os professores fossem testados. Nem mesmo o restante dos trabalhadores da Educação e estudantes foram incluídos nesse procedimento. Os resultados da testagem eram cada vez mais assustadores porque mais e mais professores publicavam seus testes positivados e também nomes de colegas que estavam adoecidos e morrendo.

desativação dos hospitais de campanha, entre setembro e outubro, foi feita para convencer a população e os meios de comunicação de que a pandemia estava sob controle, mesmo que os cientistas apontassem noutra direção.

Cientistas como Lucas Ferrante, biólogo e pesquisador doutorando do INPA, Jesem Orellana, epidemiologista da FIOCRUZ/Amazônia e suas equipes, alertaram seguidamente para a iminência do colapso do sistema de saúde e início de uma 2ª onda, bem como sobre a necessidade de medidas a serem adotadas para uma redução dos danos, mas foram não só rejeitados, como também foi orquestrada uma campanha de desqualificação e ameaças.[6]

Neste momento estamos em plena 2ª onda que se mostrou mais claramente a partir das festas de final de ano e apresenta índices alarmantes tanto no quantitativo de contaminados como no de mortos. Chamo atenção ao fato de que o governo não registra sequelas, o que é um erro terrível, porque muitas pessoas ficam com sequelas graves, por muito tempo, sem assistência, sem conseguir trabalhar e passando por privações. Toda a rede hospitalar, privada e pública, segue colapsada e ocorre o agravante de não ter oxigênio. Ambulâncias fazem filas na frente dos hospitais sem ter como internar os pacientes e sem poder atender a outros. Pessoas desesperadas dos municípios do interior do estado encontram formas de se deslocar para Manaus e ficam aguardando vaga nas portas dos hospitais onde inclusive temos registros de morte. Quando conseguem vaga para internação dos familiares ficam eles próprios sem alojamento e alimentação. Muitas pessoas estão em casa e ali morrem sem assistência ou sem oxigênio.

No prazo de apenas 7 dias a demanda de oxigênio aumentou 11 vezes[7] o que potencializou a crise dos hospitais, especialmente dos que atendem especificamente pacientes com Covid-19. Situação que nos faz exportar pacientes para outros estados como Piauí, Maranhão, São Paulo, Palmas, Paraná e também para o Distrito Federal.

Aliás, registre-se que Pazuello, o m(S)inistro da Saúde foram devidamente notificados com antecedência (ainda em dezembro/2020) de que faltaria oxigênio e não adotou as necessárias e urgentes medidas para evitar a falta de oxigênio, e assim muitas pessoas nos hospitais, ambulâncias e em domicílio morreram asfixiadas. Nos dias de maior registro de falta de oxigênio existem denúncias de que alas inteiras de hospitais morreram por asfixia.

Essa situação foi vivida inicialmente na capital, com registro de índices absurdos de 225 enterros em um único dia, fato que se repetiu também em outros municípios como é o caso de Coari onde 7 pessoas morreram no mesmo dia, 6 em Itacoatiara no mesmo dia, algumas da mesma família, e todas professoras. Vivemos situação caótica também em Parintins, Manacapuru, São Gabriel da Cachoeira e toda uma longa lista que agora também já inclui municípios do Pará. Ou seja, um verdadeiro atentado contra à saúde pública e contra a população. Registre-se que há um quantitativo enorme de subnotificações, de diagnósticos falseados nos atestados de óbitos e nas somas de um dia para outro. Exemplifico: No dia 31.01 tivemos 225 enterros, a média em Manaus é em condições não pandêmicas é de 30 enterros. Foi noticiado no telejornal do G1 que os mortos atestando com Covid eram 59. De 225 abatemos 30 e 59, e nos sobram 136 que vão ter diferentes diagnósticos, mas a ampla maioria é por Síndrome Aguda Respiratória. Ora, é obvio demais que algo muito sério está acontecendo pra tanta gente morrer de SAR justo em tempo de pandemia de Covid-19 e não antes.

Recomendo que assistam a entrevista de Jessen Orellana onde estabelece a conexão entre a situação vivida em Manaus e o retorno precipitado do trabalho presencial na rede estadual de ensino em Manaus.[8]

Os registros da Fundação Vigilância da Saúde-FVS são os únicos, e os cientistas apontam erros e lacunas frequentemente.[9]

A esquerda manauarae, estendendo, do Amazonas vem, a meu ver, de sucessivas derrotas eleitorais, tem um movimento partidário, sindical e popular com rasgos bem burocratizados e sectários falando de forma muito genérica, pois é obvio que há exceções. Daí que a construção de uma frente ampla é um trabalho extremamente desgastante, mas para a qual seguimos investindo tempo e energia.

Há poucas semanas conseguimos o grande feito de organizar a Frente Cabana em Defesa da Vida para tentar responder de forma unificada aos ataques desferidos pelo governo durante a pandemia. Realizamos discussões políticas importantes com as principais lideranças e elaboramos coletivamente um Programa Emergencial. Votamos duas consignas centrais que funcionam juntas: Vacina Já, que evoluiu para Vacinação para todos e Renda básica já. (Ver o Programa Emergencial da Frente Cabana) [10]

A Frente Cabana já conta com muitas entidades e seus representantes (partidos, centrais, entidades do movimento sindical e popular, organizações religiosas), se move meio devagar frente às necessidades objetivas, mas tem avançado e dentre as várias ações realizamos uma carreata no dia 24 e transmissões ao vivo a cada semana com uma participação realmente significativa se consideramos o histórico desse tipo de ação na esquerda manauara.

Diante do agravamento da pandemia temos todo um quantitativo de pessoas em situações emergenciais por conta do colapso do sistema de saúde e da rede hospitalar com a ausência de leitos clínicos e de UTI, da falta de oxigênio, de medicamentos (sim, temos que enfrentar o problema da distribuição massiva de drogas que não são eficazes no trato da Covid tais como a Cloroquina, Hidrocloroquina e Ivermectina) e até mesmo de alimentos. Então foi proposta a criação de um grupo de trabalho que se dedicaria a reunir fundos quase sempre doados por sindicatos, principalmente os de professores, e ajudar as pessoas em situações mais críticas. Mas, como as decisões têm sido consensuadas e não havia consenso, criamos o Comitê Popular pela Vida que tem recebido aportes de sindicatos, principalmente de Trabalhadores da área da Educação. O lançamento desse Comitê contou com grande participação, foram formados vários grupos de trabalho e está tudo muito criativo e interessante.[11]

A partir desse Comitê reunimos professores que já vinham reunindo dados sobre os mortos da categoria e passamos a construir o Memorial dos Trabalhadores da Educação do Amazonas que cataloga os tombados de todo o setor da Educação e pretende construir um monumento físico além de um documentário. O lançamento foi feito no dia 13.02.2021 e sensibilizou e emocionou a categoria que se expressou com muitas mensagens. [12]

Trabalhadores da rede pública estadual e municipal reuniram diferentes coletivos e forças organizadas no seio da categoria e formaram uma Frente para atuar em unidade de ação. [13]

Ao mesmo tempo tocamos as atividades na Frente Nacional Contra Privatização da Saúde, do Fórum de Entidades que organizamos para defender os serviços públicos contra a Reforma Administrativa do governo, temos também um grupo de Campanha Fora Bolsonaro e por aí vai.

Explico que é uma necessidade urgente pressionar o governo para receber e atender os grupos de cientistas, pois eles já estão com resultados de estudos e pesquisas que demonstram a necessidade premente de termos um isolamento social real com pelo menos 80 a 90% das atividades paradas, que seja por mais de 20 dias e que isso necessariamente tem que ser acompanhado do retorno do Auxílio Emergencial, Vacinação e Testagem massivas, além de garantir que não haja o retorno das atividades escolares. Também queremos formar um organismo independente do governo para acompanhar o processo de vacinação no sentido de evitar os fura-filas e também o roubo de vacinas e o controle da distribuição do oxigênio. Ou seja, necessitamos de controle social. Recomendo especial atenção aos estudos de Lucas Ferrante e Jesem Orellana. [14]

Vale registrar que a Câmara de Vereadores de Manaus votou no dia 26.01, um auxílio emergencial de míseros 200,00. Mas, segundo informações da secretaria municipal da mulher, assistência social e cidadania – SEMASC, em manaus, existem 58.890 pessoas vivendo em situação de pobreza e 99.633 pessoas em situação de extremapobreza. Mesmo com essas informações, a prefeitura aprovou o valor de 200,00 para somente 40 mil pessoas. Um ou dois dias depois o governador Wilson Lima comunicou a aprovação de um auxílio emergencial do estado no valor de 600,00,mas na verdade são apenas 600,00 divididos em 3 parcelas.

Ora, se em Manaus existe 157.452 famílias caracterizadas como pobres ou extremamente pobres o Estado do Amazonas precisaria também de muito mais que 157.000 Auxílios para cobrir toda a população vulnerável. O Governo Wilson Lima[15] informa que vai pagar R$ 200,00 para 100 mil famílias por três meses. Considera para tal as famílias de extrema pobreza ou pobreza no Estado. Diz que vai pagar em cartão e não em dinheiro e que vai entregar em Casa.

Em síntese, necessitamos de Vacina, Oxigênio e Renda para sobreviver e já estamos fazendo campanha contra o retorno ao trabalho presencial. Chamo atenção que não é suficiente nos posicionarmos contra as aulas presenciais, pois isso exclui outros trabalhadores da Educação que também estão sendo colocados em situação de risco. Devemos nos posicionar como Educação: Contra o Retorno do Trabalho Presencial ou algo desse tipo.


[1]  https://computerworld.com.br/negocios/sony-anuncia-fechamento-da-fabrica-de-manaus-e-interromper-vendas-de-tvs-cameras-e-equipamentos-de-audio/#:~:text=N%C3%B3s%20decidimos%20fechar%20a%20f%C3%A1brica,tend%C3%AAncia%20esperada%20para%20os%20neg%C3%B3cios.

[2]  https://amazoniareal.com.br/manaus-enfrenta-uma-sindemia-pior-que-uma-pandemia/

[3]  https://amazoniareal.com.br/como-o-povo-ashaninka-nao-pegou-covid-19-ate-agora/

[4] 

[5]  

[6]  https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2021/01/13/consumo-de-oxigenio-hospitalar-no-amazonas-aumentou-mais-de-onze-vezes.htm

[7]  Entrevista de Jesen Orellana – https://globoplay.globo.com/v/9227068/

[8]  http://www.epsjv.fiocruz.br/noticias/entrevista/quem-opta-pelo-controle-da-epidemia-dentro-do-hospital-opta-pela-morte-e-nao-por?fbclid=IwAR3-IoaeROhBJ8P2n5lYgLosYeH2_gPmY0VlmqU8BufENEusyckgmceeisI

[9]  Portal da http://www.fvs.am.gov.br/puboeslicac

[10]  Programa Frente Cabana pela Vida http://alternativasocialista.com/campanha-nacional-de-solidariedade-e-apoio-ao-povo-trabalhador-de-manaus-e-do-amazonas/ 

[11]  MEMORIAL DOS/AS TRABALHADORES/AS DA EDUCAÇÃO DO AMAZONAS MORTOS NA PANDEMIA DO COVID 19 http://alternativasocialista.com/memorial-dos-as-trabalhadores-as-da-educacao-do-amazonas-mortos-na-pandemia-do-covid-19/

[12]  MANIFESTO POR MEDIDAS EM FAVOR DA VIDA

[13]  UNIDADE DE AÇÃO CONTRA O RETORNO DO TRABALHO REMOTO E PRESENCIAL NA EDUCAÇÃO DO AMAZONAS

[14]  Nota Técnica: Necessidade de lockdown e vacinação abrangente em Manaus para contenção da pandemia da Covid-19 – Lucas Ferrante1,*, Wilhelm Alexander Steinmetz2, Alexandre Celestino Leite Almeida3, Jeremias Leão2, Unaí Tupinambás4, Ruth Camargo Vassão5, Philip Martin Fearnside5, Luiz Henrique Duczmal4: e ALERTA EPIDEMIOLÓGICO – Manaus permanentemente ameaçada – Especial vacinação em massa -17.02.2021 – Jesem Orellana

[15]  http://www.amazonas.am.gov.br/2021/01/wilson-lima-anuncia-auxilio-estadual-de-r-600-para-familias-em-situacao-de-extrema-pobreza-no-estado/