Peru: a pátria, o futebol e o macartismo
Compartilhamos o artigo do jornalista Gustavo Veiga publicado na página Periodismo de Izquierda.
Há uma dura partida contra a esquerda nas eleições do Peru, com segundo turno marcado para o próximo domingo, em 6 de junho. Doze jogadores da Seleção Nacional se manifestaram contra o comunismo em campanha dissimulada contra o candidato Pedro Castillo. Mesmo sem dizer, jogaram por Keiko Fujimori, filha do ex-presidente preso. Sobre ela, pesa uma ordem da promotoria de 30 anos de prisão por lavagem de dinheiro e outros crimes.
Onze anos atrás, quando chegou ao St. Pauli para jogar na Bundesliga, Carlos Zambrano teria sido repudiado pelo que disse hoje: “Quero um Peru sem comunismo e livre”. O clube alemão é um bastião da esquerda, do feminismo e do orgulho gay. O zagueiro do Boca e onze companheiros do time peruano escolheram Keiko Fujimori para presidente no segundo turno. Deixaram isso explícito apelando para vídeos panfletários e macartista. Essa decisão esquentou o termostato eleitoral. O outro candidato e professor rural, Pedro Castillo, respondeu com uma frase maradoniana: “Por respeito a este país e por honra deste país, gostaria de vos dizer que o vermelho-branco não se mancha”. O técnico Ricardo Gareca e o sindicato local dos futebolistas SAFAP estiveram ausentes da polêmica. Mas o mesmo não aconteceu com a Federação – a AFA de lá – presidida por Agustín Lozano. O dirigente milita na Aliança para o Progresso (APP) que apoia Keiko, três vezes presa e com uma denúncia atual por lavagem de dinheiro e um pedido de promotor de justiça a 30 anos de prisão.
Lozano é chamado de revendedor. Em junho de 2020, a Conmebol o multou em US$ 5 mil por essa conduta. Ele e sua diretoria na Federação Peruana venderam ingressos que não lhes pertenciam. O dirigente é um aliado político de César Acuña, o fundador da APP, que fez uma escolha muito boa nas eleições parlamentares de 2020. Este político fundou o clube da Universidade César Vallejo e é dono da universidade que leva esse nome.
A jornalista Camila Zapata, da DirectTV Peru, sugeriu em sua conta no Twitter que as ligações entre Lozano, Acuña e Fujimori deveriam ser investigadas mais a fundo. Também disse que “o deslize dos jogadores de futebol foi organizado por seus representantes.” Onze jogadores, além de Zambrano, apoiaram Keiko com mensagens semelhantes e sem citar seu nome. Em alguns casos, como o do goleiro Pedro Gallese, era óbvio que lia para as câmeras: “Agora há um discurso que tenta dividir e diferenciar ricos e pobres, cholos, brancos e negros, quando o que precisamos é unir mais”. O panfleto Edison Flores juntou-se a um retumbante “Não sou comunista, voto pela democracia”.
Desfilaram em campanha pela filha do ex-presidente preso – condenado a 25 anos de prisão por crimes contra a humanidade e corrupção – outros nove jogadores de futebol do time: Jeferson Farfán, André Carrillo, Paolo Hurtado, Raúl Ruidíaz, Wilmer Cartagena, Manuel Trauco, Aldo Corzo, Sergio Peña e Luis Advíncula. Este último – ex-lateral do Newell’s – foi criticado na Espanha por apoiar Fujimori. Joga no Rayo Vallecano, clube semelhante ao St. Pauli devido à composição da torcida que o acompanha. Tão antifascista quanto engajada em campanhas sociais e políticas. “É uma pena que você use a listra vermelha, seja ela qual for. Estamos contando os dias para que você pare de sujá-la”, disse o comunicado das torcidas do time Vallecas, do bairro operário de Madri.
A operação sincronizada dos integrantes – a partir de apelos ao sentimento patriótico e futebolístico – também teve repercussão negativas à desejada no Peru. Como não foi unânime, abriu um racha político no establishment. Paolo Guerrero, Yoshimar Yotún e Renato Tapia – três de suas principais figuras – não falaram. Luis Tapia, irmão do meio-campista que joga no Celta de Vigo, disparou contra Edison Flores: “Ei, como você vai dizer que está bem informado e depois dizer que vota pela ‘democracia’? Onde você se informou que fujimorismo é democracia? Na escola laranja? Miki Torres, aquele que trouxe o papel higiênico para Keiko na prisão, com certeza foi seu professor de história. Ou quem lhe deu o papel que você está lendo? Mais do que informado, você parece comandado, e pelo inimigo. Paltazar”. No Peru, esta última palavra pode ser entendida como “vergonha”.
A campanha #PonteLaCamisetaPerú levantou uma polêmica que envolveu outras figuras conhecidas além do futebol. O escritor e jornalista Diego Trelles Paz, residente na França e militante do Novo Peru, a psicóloga e antropóloga Veronika Mendoza – aliada de Castillo – escreveu: “Keiko Fujimori conseguiu quebrar a seleção nacional e mantê-la longe de milhões de fãs. Eles usaram a camisa de todo mundo. Estão marchando de forma irreversível. Já imaginou a seleção chilena pedindo a volta do pinochetismo por amor à camisa e pelo orgulho de ser chilena?”.
Keiko Fujimori não tirou a camisa do time peruano desde que iniciou a votação. Quando tem chance, tira fotos com a bandeira vermelha e branca. Keiko usa os símbolos da pátria esportiva com uma agressiva campanha macartista que foi ampliada por jogadores como Zambrano. Ela diz que não fez nenhum acordo com os jogadores de futebol, mas usou seus vídeos. As invocações ao perigo do comunismo são um canto que aparece em painéis publicitários, trolls, mensagens do WhatSapp, a imprensa que a acompanha em bloco e o peruano mais famoso, Mario Vargas Llosa. “Você sabia que o voto em branco contribui para o comunismo?” ou “Pense no seu futuro: Não ao comunismo” são alguns dos cartazes que brilham à noite em Lima, onde Keiko tem uma vantagem muito grande sobre o rival. Castillo ganha – segundo a pesquisa da DATUM – no resto do país. Hoje, segundo aquela pesquisa, seria de 45,5% a 40,01% com tendência de alta.
Neste clima de Guerra Fria, o Peru caminha para as eleições realizada no próximo domingo, 6 de junho. A Federação local se antecipou das críticas as declarações dos jogadores. Elkin Sotelo, assessor de imprensa, afirmou que “foram livres para exprimir as suas opiniões” e Flaco Gareca disse num tom semelhante: “os jogadores podem exprimir-se livremente”. Três dias antes do segundo turno, seu time recebe a Colômbia para as eliminatórias da Copa do Mundo do Catar. O treinador e seus jogadores vão tentar tirar o Peru da última posição na tabela que divide com a Bolívia. Adicione apenas um ponto entre doze possíveis. Mas o país precisa de muito mais do que isso ou da obra Travessuras da menina má – título de um romance que Vargas Llosa publicou em 2006 – que Fujimori representou, a redentora que agora luta contra o comunismo.
O professor de lápis, sindicalista e chapéu de aba larga, transformou-se no que não é. Um grande monstro pisando firme e vindo em uma propriedade privada. Uma dúzia de jogadores da seleção nacional ajudaram a moldar essa imagem dele. Em uma semana saberemos se venceram este jogo que é disputado fora de campo. Nunca um grupo de jogadores de futebol endossou uma das causas mais patrióticas-chauvinistas. Em 28 de julho – dia do bicentenário da independência peruana – se o sobrenome Fujimori voltar ao Palácio do Governo, estarão cantando ganhamos a partida do truco.