Entrevista com Thiago Carvalho: “estamos em uma pandemia, mas a fome e a miséria já fazem parte do cotidiano de boa parte dessa população há tempos”

Entrevistamos o companheiro Thiago Carvalho, conselheiro tutelar na cidade do Recife, Pernambuco, e militante do PSOL. Como é que os milhões que não podem “ficar em casa” porque não têm comida ou água atravessam a pandemia todos os dias? Na segunda cidade mais pobre do país, a situação de pobreza é desesperadora.

Alternativa Socialista: Qual é a situação de os e as jovenes em seu distrito? Tem garantido o acceso à educação, saúde, renda básica?

Thiago Carvalho: A cidade onde moro já é segunda cidade mais desigual do país, carregamos esse título há muitos anos. Essa informação ajuda na reflexão do atual cenário, diante de uma pandemia que obriga pessoas, em nome da sobrevivência, da saúde, a ficarem em casa. Você imagina essas pessoas, que compõem esses números negativos da desigualdade, sem nenhuma renda, terem que ficar em casa, quando na maioria dos dias é necessário trabalhar durante um período, pra poder ter o que comer no outro. Ou seja, estamos em uma pandemia, mas a fome e a miséria já fazem parte do cotidiano de boa parte dessa população há tempos. Existe uma vulnerabilidade social acentuada e estruturante ligadas a outros problemas como falta de moradia, saneamento básico que garanta a condição mínima de higiene. Isso significa dizer que os mais pobres são os que mais sofrem em meio a proliferação desse vírus.  Todos esses problemas já existem, digo sempre que não podemos voltar ao normal, porque a vida antes da pandemia não era normal, era anormal ter tanta gente querendo estudar e não ter acesso por falta de vaga. Precisar de um tratamento médico e não conseguir devido ao sucateamento da saúde pública em nosso município. Hoje se debate a possibilidade de realização do ENEM ainda esse ano, mas diante do cenário descrito você deve imaginar como estão esses jovens hoje em suas casa. Na maioria dos casos não há computador para realizar pesquisas e interagir nas aulas online. Muitas vezes a casa é um cubículo moram inúmeras pessoas e é desafiante estudar nessas condições.  

AS: Para você, é possivel garantir a quarentena em essos bairros? A poblação tem garantidos direitos básicos como comida para “ficar em casa”?

TC: Eu trabalho no bairro de Areias, e o conselho tutelar da minha região é responsável por atender 16 bairros próximos, todos periféricos, com uma população majoritariamente de baixa renda, que vivem do dia dia . O que se viu foram fases diferentes nesses territórios. Uma hora, no início, houve uma adesão maior, uma consciência vinda do medo. Porém iniciou o descrédito devido a desinformação disseminada de forma feroz através das redes sociais, junto a desorientação vinda do próprio governo e de pessoas que compõem esse governo, isso tudo misturado a dificuldade em garantir o auxílio emergencial prometido pelo próprio governo federal. Esse auxílio está previsto para ser paga a aproximadamente 70 milhões de pessoas, sendo que uma parte significativa da população ainda não teve acesso nem a primeira parcela dessa renda, prevista para ser paga em três parcelas. São desempregados, pessoas que estão sem salários devido a quarentena, uma população que depende desse dinheiro para que possa cumprir o isolamento social por esse período crítico que estamos vivendo, devido ao Coronavírus.

Brasilia Teimosa, Recife

AS: Existem organizações não governamentais fazendo atividades solidarias na comunidade diante o avandono do estado?

TC: Acho que o terceiro setor sempre teve uma participação importante diante da “lógica social” vivenciada no Brasil, pais desigual, com inúmeras carências e negação de direito. Nesse momento específico de pandemia elas se fazem presentes e desenvolvem um trabalho muito importante na tentativa de minimizar os efeitos causados pelo isolamento social estendido e diante da ausência do estado. As organizações acabam desenvolvendo esse trabalho que se espera do estado. Aqui no nosso bairro e nas comunidades do entorno não é diferente. São organizações locais que se criaram para esse fim, junto a outras organizações que já existiam, e desenvolviam atividades junto a população e que nesse momento tem tentado arrecadar para distribuir. Essa é a principal atividade desenvolvida por essas organizações aqui, na tentativa de minimizar a fome, vem a solidariedade praticada por essas organizações.

AS: Como você pensa que os Conselheiros Tutelares podem colaborar nessa situação?

TC: O conselho tutelar se tornou um órgão de grande necessidade do Brasil devido a violação de Direitos ter índices tão elevados por aqui, ainda mais se tratando de uma cidade como Recife, que carrega o estigma de ser uma cidade vice campeã em desigualdade, só perdendo para Brasília, que tem suas particularidades devido a concentração de servidores públicos bem remunerados. Nosso Conselho tem por finalidade zelar pelo bem-estar das crianças e adolescentes, bem como fiscalizar se a família, a sociedade e o Poder Público estão assegurando, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos, previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente e na Constituição Federal, não é uma tarefa fácil, diante de tamanha necessidade. No mês de março, quando ainda estava iniciando as intervenções do poder público na sociedade, suspendendo atividades visando diminuir a circulação de pessoas e salvar vidas, o Conselho tutelar recebeu a orientação de alterar sua rotina de trabalho, diminuindo a concentração desses agentes públicos no local do expediente, ficando apenas dois conselheiros presencialmente diariamente e os demais trabalhariam online, por telefone, ou de outras formas que se garantisse o distanciamento social. Porém foi justamente nesse período de isolamento social, onde as crianças e adolescente estão em quarentena, que as denúncias tiveram um aumento significativo, aumentando também a necessidade de atuação dos conselheiros tutelares. Sabe-se, por dados estatísticos, que a violência praticada contra crianças e adolescente , na maioria das vezes tem como autor alguém da família ou próximo a ela. Seja essa violência de qualquer caráter e natureza, desde a sexual até uma agressão psicológica. E é exatamente esse período de isolamento que essas crianças estão confinadas, convivendo com seus agressores. O Conselho Tutelar da RPA 5, onde trabalho, funciona de segunda a sexta feira, das 8 às 18 horas, mas o Conselho Tutelar do Recife Funciona 24 horas por dia, todos os dias da semana com serviço de plantão presencial. Sempre que necessário terá um conselheiro para atender a população.

AS: Qual é tua opinião em relação aos governos nacional, estadual e municipal?

TC: Em meio a uma situação atípica de pandemia, é importantíssimo a presença de um governo forte. Nesse período as condições de extrema pobreza e de precariedade em que vive boa parte da população brasileira aparecem no debate público como há muito tempo não apareciam. A falta de saneamento básico é gritante e  só agora há uma preocupação real em relação a isso. A necessidade de proteção “dos mais frágeis” é urgente e necessita da sensibilidade desses entes representativos. A importância de ações emergenciais de proteção social passa a ser fundamental e o discurso messiânico de que só o mercado salvará a tudo e a todos perde, momentaneamente, a legitimidade sua eficácia e viabilidade. Esses governos tem feito um trabalho, minimamente, nessa perspectiva, porem precisamos ser mais, precisa ser mais eficaz, pra que se tenha melhores resultados. Pessoas estão passando fome e ainda na fila para receber o tão falado Auxílio Emergencial prometido pelo estado. Muitas não tem o nome nas listas de doação de cestas básicas do poder municipal. Precisamos pressionar o poder executivo em todas as esferas para que esse socorro se concretize e a gente de fato possa salvar vidas.