Debate sobre Putin e o imperialismo russo

Por Sergio García – MST / FIT-U, Argentina

A guerra na Ucrânia revelou novos debates. A necessidade de enfrentar a estratégia expansionista dos EUA e da OTAN é um fato evidente. Ao mesmo tempo, por si só, não é suficiente para compreender o que está acontecendo na Ucrânia e no Leste Europeu. Menos ainda para entender a dinâmica da Rússia e o motivo deste país não ser de um campo progressista, mas sim outra potência imperialista em ascensão, neste momento invadindo a Ucrânia e atacando sua população. Abordaremos este debate.

O intelectual brasileiro Emir Sader escreveu para o jornal argentino Pagina 12: “A terceira década do novo século projeta assim uma nova forma de guerra fria… Comparada a força que teve na primeira guerra fria, seja no campo político, econômico, tecnológico ou mesmo militar, os Estados Unidos são flagrantemente mais fracos. Na crise da Ucrânia, mesmo a superioridade militar dos EUA se revelou relativa, pois a iniciativa e a audácia da Rússia neutralizaram sua capacidade de ação… O século XXI continuará sendo um século de disputa entre o declínio da hegemonia dos EUA e a ascensão de forças favoráveis a um mundo multipolar”.

Sader retrata um mundo onde existe apenas um campo imperialista, liderado pelos EUA e, na outra trincheira, existe apenas um campo progressivo, liderado pela China e Rússia, que querem um mundo multipolar. Nesse sentido, o último deve ser apoiado.

Seguindo a mesma lógica, Atilio Borón que, como Sader, representa uma voz de campo da Rússia “progressista”, afirma que a guerra na Ucrânia é “uma tragédia que poderia ter sido evitada e em face da qual não há neutralidade possível. Há um lado agressor, os Estados Unidos e a OTAN, e um lado agredido, a Rússia. Aqui não pode haver qualquer confusão”.

Poderíamos citar outros textos semelhantes de intelectuais do mesmo campo que utilizam a correta necessidade de enfrentar os EUA e a OTAN como justificativa para apoiarem Putin e o regime expansionista russo, que é diretamente responsável não apenas pela invasão e massacres na Ucrânia, por ações semelhantes em vários outros países e pela repressão interna permanente na Rússia, onde encabeça um regime capitalista bonapartista e reacionário.

Rússia, história e presente

Como socialistas militantes, defensores dos melhores ensinamentos do leninismo e do trotskismo, nada temos a ver com as posições encorajadas pela imprensa pró-imperialista e seus ideólogos, que procuram explorar a invasão de Putin na Ucrânia para gerar um sentimento anti-russo, equiparando-o indiretamente como sinônimo de esquerda e comunista. Somos defensores da história revolucionária da Rússia soviética, que na época expressou o mais avançado com a classe trabalhadora no poder, iniciando uma mudança de época na história da humanidade. Foi precisamente essa etapa revolucionária que veio para interromper a decadência do opressivo império czarista e todas as suas visões chauvinistas de “prisão dos povos”, como Lenin denunciou na época. As mesmas pretensões imperialistas e opressivas que hoje, em um contexto e em um tempo diferente, aparecem mais uma vez em todas as suas dimensões; a opressão que Stalin também promoveu como chefe político da burocracia, que mais tarde se tornou uma burocracia restauracionista. A história da Rússia tem uma essência quase permanente de políticas e ações imperiais sobre todos os povos da região, um comportamento que não foi apenas um caso no breve período dos anos de boom da revolução russa dirigida por Lenin, Trotsky e os bolcheviques.

Na virada do milênio, o que vem acontecendo há anos no interior da Rússia, e como uma extensão dessa realidade em sua política externa, nada tem a ver com essa tradição progressista e revolucionária do bolchevismo. Após a queda do aparato estalinista contrarrevolucionário e o avanço do processo de restauração, a Rússia tornou-se uma nova potência capitalista que, após um revés inicial nos anos 1990 e início dos anos 2000, vem nos últimos quinze anos recuperando o peso regional e se reintegrando na disputa global, agora como uma potência capitalista. Aproveitando, após a crise global de 2008, o enfraquecimento do imperialismo estadunidense e europeu.

Aqueles que, com uma posição anti-imperialista contra os EUA, escondem o papel regressivo e reacionário da Rússia no cenário mundial, encobrindo conscientemente o fato de que o regime russo sob Putin vem cometendo atrocidades em vários países. Ao mesmo tempo, está avançando militar, econômica e políticamente em toda a sua zona de influência, a um ritmo mais lento, mas avançando em vários continentes do mundo.

Que devemos enfrentar os planos dos EUA, principal potência imperialista, não está em debate, logicamente devemos sempre fazê-lo como uma tarefa central. O debate aqui é outro. É que os defensores de Putin nada dizem sobre o fato de que, no último ano, as ações do governo russo e seu poder militar foram fundamentais para suprimir as revoltas populares de massas na Bielorrússia e no Cazaquistão, que tiveram revoltas populares progressivas contra os planos de ajuste e seus governos, apoiados por Putin para deterem as revoltas. Também não dizem nada sobre sua incursão anterior na Síria, em apoio a uma ditadura sangrenta de décadas, com o exército russo desempenhando um papel fundamental para deter a primavera árabe neste importante país do Oriente Médio. Ou suas incursões contra o povo checheno, ou contra a própria Ucrânia anos atrás. Ou suas amizades e acordos atuais com Israel, o Talibã, os direitistas europeus e, ultimamente, até mesmo Bolsonaro.

Agora, remando na maré contrária ao melhor da tradição russa, e leninista, que estava na vanguarda ao conceder ao povo ucraniano seu direito à autodeterminação, o poderoso exército russo, sob Putin, invade, destrói, mata civis com o objetivo de dirigir a vontade e o destino de um país semicolonial. Para o campismo, no entanto, a Rússia é a vítima. Nas palavras de Borón, “não pode haver confusão”. Mas isso não é confusão, são enganações conscientes. Nunca pode ser positivo, para enfrentar uma potência imperialista como os EUA e a OTAN, apoiar e justificar outras potências com planos e ações imperialistas em andamento.

Rússia, também imperialista

Esta definição é negada pelos intelectuais reformistas e campistas que veem o mundo como se existissem apenas dois campos: um imperialista e mau e um bloco multipolar, bom e positivo. Já explicamos o papel regressivo que a Rússia desempenhou durante todos estes anos em todos os países onde interveio política e militarmente, com o objetivo de fortalecer seus objetivos como potência e atacar os direitos sociais e democráticos de povos inteiros, dentro e fora de suas fronteiras.

Também na esquerda anticapitalista e socialista, existem debates e diferenças a este respeito. Em todo o mundo, a esquerda debate o que é a Rússia e qual o pape desempenhado por este país. Por exemplo, em nosso país, Argentina, na Frente de Esquerda – Unidade (FIT-U), há camaradas que não consideram a Rússia como uma potência imperialista. O PTS denuncia a Rússia em seu ataque à Ucrânia, mas, ao mesmo tempo, não a consideram imperialista. Sem esta definição, mais cedo ou mais tarde leva a grandes erros políticos, porque não se tem a mesma política para uma potência imperialista e para um país não imperialista.

De fato, o PTS e sua organização internacional publicou suas opiniões neste conflito com esta palavra de ordem em sua declaração: “Abaixo a escalada bélica dos EUA e da OTAN no Leste Europeu. Nenhuma intervenção imperialista e nenhuma interferência militar russa na Ucrânia”. Nessa lógica, atribuem um papel imperialista apenas aos EUA e à Rússia somente o de “interferência militar”. Dias após esta declaração, foi a Rússia que invadiu e bombardeou um país semicolonial. Com o passar dos dias, diante da realidade óbvia, mudaram sua posição, mais corretamente, começando por denunciar a invasão russa e denunciar a OTAN e seus planos, embora ainda não definam a Rússia como imperialista. A razão disto é precisamente porque não possuem uma definição clara do que a Rússia realmente é no contexto atual. E isto é essencial para não ceder à pressão das posições do campismo.

Para explicar que não é imperialista, os camaradas publicam no La Izquierda Diario um texto de três anos atrás de Stanfield Smith, que fornece uma série de dados econômicos e financeiros para apoiar a afirmação de que a Rússia não é imperialista.

Entretanto, todo o texto e os dados, muitos deles reais, embora em alguns casos desatualizados, são tendenciosamente combinados com conclusões esquemáticas, alheios ao desenvolvimento desigual e combinado de uma potência imperialista crescente, e alheios à intervenção concreta da Rússia na realidade regional e mundial. Lenin logicamente fez definições do que era o imperialismo quando houve uma mudança de época, quando o sistema como um todo foi transformado em capitalismo imperialista. Mantendo esses parâmetros, não podem ser tomados como um esquema fora da realidade, mais de cem anos depois.

Por exemplo, com dados e esquemas estáticos, alega-se que a Rússia não é imperialista porque está muito atrás dos EUA, China ou Alemanha em termos de investimentos, no peso dos grandes negócios russos entre os maiores do mundo e no atraso nas exportações de capital. No entanto, isto não prova que não é imperialista, senão que demonstra que não é o imperialismo mais importante, menos ainda o hegemônico. Explica que existem desigualdades mesmo entre os diferentes imperialismos em seus diferentes graus de desenvolvimento. Os dados mostram que há alguns que, mesmo com debilidades, são dominantes, e outros vindos de posição mais rebaixada, procuram ganhar um lugar em um mundo em convulsão e de crise sistêmica do modelo capitalista-imperialista. A realidade também mostra que a Rússia é um imperialismo em desenvolvimento, com elementos desiguais e um tipo diferente de imperialismo, porque age sob um modelo de capitalismo de Estado, diferente do imperialismo do Ocidente.

Realidade, dinâmica e desenvolvimento desigual

Assim como é verdade que o marxismo deu uma série de condições econômico-financeiro-militares para definir o imperialismo, estas não podem ser tomadas como esquemas ou como adições e subtrações de cada item, mas olhando para a realidade e a dinâmica concreta. Uma potência imperialista tem desigualdades em seu desenvolvimento, pode ser mais atrasada nas exportações de capital, mas muito avançada em seu poder e influência militar em áreas muito importantes do mundo. Pode não ter as grandes corporações e trusts, mas tendo alguns importantes, pode ter planos expansionistas baseados em grandes riquezas naturais, o que a coloca numa posição de superioridade, mesmo sobre outros países imperialistas.

Estamos em um novo milênio e em uma nova situação internacional. Ao contrário de esquemas, devemos usar a lei de desenvolvimento desigual e combinado de Trotsky, que é muito mais útil para entender como uma potência mesmo mais fraca em termos econômicos e financeiros, EUA, Alemanha, França e Inglaterra, não decide intervir diretamente com suas tropas no campo de batalha, por causa da incerteza que tal passo abriria.

Ao mesmo tempo, a Rússia não pode ser definida fora da realidade. Se não é um império expandindo seus planos e força, por que o mundo reconhece uma região continental com países em seus braços? Ou alguém acredita que os povos de toda região no Leste Europeu não a percebem como uma força imperialista? Constantemente chicoteando, ameaçando, anexando, intervindo ou invadindo-os diretamente.

Pode-se afirmar que, ao mesmo tempo em que a Rússia tem a capacidade de cortar grande parte do fornecimento de gás e energia para a Europa, e a Alemanha em particular, mas não tem peso significativo na economia mundial?

A Rússia pôde invadir e enviar tropas, armas e mercenários para os últimos cinco ou seis grandes conflitos na Europa e no Oriente Médio, e isso não é uma característica central de uma potência imperialista?

A realidade é tão evidente que, embora se recuse a definir a Rússia como imperialista, o camarada Matias Maiello do PTS escreveu em seu último artigo que: “hoje é um país capitalista, que embora não seja imperialista no sentido preciso do termo (na medida em que não tem projeção internacional significativa de seus monopólios e exportação de capital; essencialmente exporta gás, petróleo e commodities; etc.) atua como uma espécie de ‘imperialismo militar’ em sua zona de influência”.

O autor não pode ignorar o papel e a capacidade militar como tema central na caracterização de uma potência imperialista, e lembremos que a Rússia é um dos países com mais ogivas nucleares, atrás apenas dos EUA na exportação de armas. Sem esquecer algo exemplar sobre a atual posição da Rússia: é um membro com direito de veto do Conselho de Segurança da ONU. Apenas cinco países têm esse status para vetar qualquer resolução, e os outros quatro são imperialistas; os EUA, o Reino Unido, a França e a China. É de se estranhar que a Rússia não seja imperialista.

Junto a isso, o texto de Stansfield Smith, citado pela La Izquierda Diario, não leva em conta a dinâmica da Rússia e o avanço nos últimos anos em termos de comércio, exportações, influência e intervenções políticas em vários continentes, enquanto o imperialismo europeu tem se retraído.

Por exemplo, sua capacidade energética é parte de seu plano de avanço imperialista, não um fato desconectado e parcial. Como diz um estudo recente, “a Rússia é uma grande potência energética, possuindo 1/5 das reservas mundiais de gás natural e 1/8 do petróleo mundial, e é líder no mercado europeu, com quase 40% do gás importado pelos países europeus. As enormes reservas de petróleo e gás da Rússia e as conexões de oleodutos e gasodutos, através de várias fronteiras euroasiáticas, são a base essencial do poder da Rússia. Os fundamentos da geopolítica energética russa são usar os recursos energéticos como um instrumento de política externa para aumentar sua influência política, seus ganhos econômicos e sua capacidade de coagir os países vizinhos e seus clientes”.

Ao mesmo tempo, nos últimos anos, a Rússia tem avançado com suas intervenções, influência comercial e política na América Latina e na África, onde as potências européias têm estado em constante retrocesso. Aqui a Rússia faz uso de um circuito de segurança privada, o Grupo Wagner, comandado por um milionário ligado a Putin, que atua sob as ordens do Estado russo. Na América Latina, embora bem atrás dos EUA e da China, a Rússia vem tomando medidas há anos em vários acordos comerciais, com centros em planos de energia e venda de armas.

Poderíamos continuar com mais dados, mas não é nossa intenção mostrar que a Rússia está à frente das principais potências imperialistas em questões econômicas ou comerciais, porque não é assim, em seu desenvolvimento desigual está claramente atrasada. Ao mesmo tempo, está progredindo nestas áreas de grande importância, enquanto em termos de ação militar e política geoestratégica, está à frente de outros imperialismos, como o imperialismo europeu, com uma fraqueza acentuada. Ou seja, seu papel político e militar central, acompanhado de pontos fortes e fracos, é um papel imperialista em toda o Leste Europeu e no Oriente Médio, e na busca de estender esta ação a outras regiões do mundo, como sócio da China.

Em resumo, nós da esquerda temos a obrigação de interpretar profundamente o mundo em que vivemos, de caracterizar corretamente todos os atores em conflito, de compreender a dinâmica das disputas interimperialistas e de não tomar partido de qualquer poder imperialista, independentemente de seu grau de desenvolvimento, mas de encorajar políticas e ações independentes, anticapitalistas e socialistas. No caso específico do atual conflito, são ordenadas pela rejeição da guerra, Fora Putin e suas tropas da Ucrânia; solidariedade com a classe trabalhadora e o povo ucraniano; Fora OTAN do Leste Europeu.