Especial – Mianmar: revolução e contrarrevolução

Desde o dia 1 de fevereiro deste ano, o povo de Mianmar, país localizado no Sudeste Asiático, enfrenta de forma heroica o golpe militar que instaurou um regime de terror, responsável pelo assassinato de centenas de pessoas. Publicamos este especial com dois artigos e uma declaração da Liga Internacional Socialista – LIS sobre o processo de revolução e contrarrevolução no país.


Revolução e contrarrevolução em Mianmar

Artigo escrito por Robert Narai originalmente para a Red Flag, publicação da Socialist Alternative, Austrália, em 20 de abril de 2021.

A violência contrarrevolucionária atingiu novos patamares em Mianmar. O Tatmadaw, forças armadas do país, tenta esmagar pelo terror o levante nacional. Começando com a Batalha de Hlaing Tharyar, um confronto de 4 dias em março entre trabalhadores e estudantes contra as forças armadas que executaram pelo menos 60 manifestantes em um distrito operário de Yangon, a maior cidade de Mianmar. O terror continuou, produzindo novos massacres enquanto o movimento anti-golpe continua a paralisar a economia com greves na maioria dos setores-chave e resiste à junta por todos os meios necessários.

No final de março, durante as comemorações do Dia das Forças Armadas, em comemoração ao início da resistência militar à ocupação japonesa em 1945, o Tatmadaw, acompanhado por representantes da Rússia, China, Índia, Paquistão, Bangladesh, Vietnã, Laos e Tailândia, desfilou pelo ruas de Naypyidaw, a capital. Enquanto isso, a polícia e as forças de segurança disparavam contra manifestações nas principais cidades e centros regionais de todo o país. O número oficial de mortos naquele dia foi de 114, mas o número real é provavelmente maior. De acordo com a Associação de Assistência a Presos Políticos, mais de 4 mil pessoas foram presas e mais de 700 mortas desde o início da resistência ao golpe em 1 de fevereiro.

As lutas de rua e as barricadas que caracterizaram Yangon durante a maior parte de março foram substituídas por postos de controle e patrulhas militares. Os serviços de Internet e telecomunicações estão ainda mais restritos. Enquanto isso, transmissões regulares na rede de televisão controlada pelos militares MRTV mostram os nomes e rostos de pessoas com mandados de prisão, pedindo aos cidadãos que informem aos militares as localizações. Em 9 de abril, a MRTV anunciou que 19 residentes do distrito de North Oakkalapa, em Yangon, haviam sido condenados à morte.

“As ruas se tornaram campos de extermínio. Tiroteios aleatórios em bairros, incluindo crianças de apenas 5 anos; trabalhadores foram baleados e mortos dentro de [suas] fábricas; incêndios e invasões em nossas casas; encarceramento em massa; funerais atacados por soldados; [os militares] estão até queimando os manifestantes vivos”, disse Me Me Myint*, uma enfermeira do Hospital dos Trabalhadores de Yangon, por telefone de um mosteiro budista em algum lugar nos arredores da cidade. Ela e centenas de outros funcionários do hospital foram despejados de suas moradias fornecidas pelo Estado no início de abril por participarem do movimento anti-golpe. Ao fundo da ligação, podemos ouvir monges budistas entoando o “Mora Sutta” (a oração do pavão para afastar os maus espíritos). Mas as orações significam pouco para o Tatmadaw, que invadem mosteiros e hospitais quase diariamente, sequestrando manifestantes feridos, antes de torturar muitos até a morte. “Nenhum lugar está a salvo desse mal”, diz Me Me.

Apesar do terror, o movimento de derrubada da junta continua encontrando formas de resistência. Manifestações curtas, ações móveis relativamente curtas (geralmente em motocicletas) de tamanhos variados que são difíceis de suprimir pelas forças de segurança, tornaram-se comuns nas principais cidades e vilas. A celebração do Ano Novo em Mianmar, o festival Thingyan, foi boicotado em abril sob o lema “Não seremos governados”. Em Yangon, imagens mostram um forte slogan em cartazes políticos e grafites direcionados ao Tatmadaw e aos Dalans: “Sua vez está chegando. Prepare-se para pagar a dívida de sangue”.

Estudantes universitários boicotam o sistema de ensino superior, convocando funcionários a se juntarem ao movimento anti-golpe. “Nosso sistema educacional apoia o fascismo. Devemos combater com todos os meios necessários ”, disse James*, um ativista estudantil e marxista, por telefone de Yangon. Ele está fugindo do Tatmadaw desde o início de abril, depois que ele e outros ativistas estudantis e líderes sindicais receberam mandados de prisão sob a acusação de incitar motins nas forças armadas. Ele agora reside em uma rede de casas seguras criadas por apoiadores do movimento, onde milhares de pessoas usam para escapar da prisão. “Na realidade, mandados de prisão são sentenças de morte”, diz ele. “Se o Tatmadaw me encontrar, certamente me matarão. Mas antes que façam isso, vão me prender e me torturar. Tentarão me forçar a revelar a localização de meus colegas e os detalhes de nossas redes. Eles podem nos aterrorizar até o fim do mundo, mas nunca nos submeteremos ao fascismo”.

A Greve Geral por tempo indeterminado continua nas principais cidades, mas perdeu muito do ímpeto que caracterizou as primeiras semanas de combates. “A repressão torna quase impossível para os trabalhadores se reunirem em público ou se manifestarem”, disse Z*, funcionário de um banco em Yangon e apoiador do movimento grevista, via Signal. Ele também diz que os bancos ainda estão paralisados, explicando que menos de 1/4 dos bancários em todo o país voltaram a trabalhar sob a ameaça de demissões em massa, prisões e despejos de suas casas. “O dinheiro não pode se mover normalmente. Os estaleiros estão paralisados; caminhões e logística também. Os motoristas não voltam a trabalhar e os militares não sabem operar [os trens]”, afirma.

Enquanto setores centrais do movimento grevista permanecem, outros foram forçados a retornar. “Os trabalhadores mais pobres, diaristas, têm poucas alternativas para voltar ao trabalho. Eles não querem trabalhar sob a direção, mas não têm as mesmas redes de apoio que alguns dos trabalhadores mais bem organizados”, diz Z*.

Apesar da Greve Geral, os cofres do Estado continuam a ser preenchidos por setores ainda não afetados pelo movimento: indústrias extrativas, como petróleo, gás, mineração de pedras raras e extração ilegal de madeira, bem como as redes de crime organizado controladas por Tatmadaw, que inclui o comércio de animais selvagens exóticos e a produção de narcóticos. De acordo com o Financial Times, só as operações de mineração de jade geram uma receita estimada de US$ 31 bilhões a cada ano.

Ao longo de abril, as cidades regionais e centros rurais tornaram-se um local chave de confronto entre o movimento e o Tatmadaw. Essas áreas tentaram expulsar as forças armadas das principais cidades e dispersar seus recursos. Em toda a região de Mandalay, vários municípios e cidades menores se mobilizaram sob o lema: “Temos medo, mas as manifestações não devem acabar”. E em Mandalay, a segunda maior cidade do país, estudantes, trabalhadores e engenheiros lideraram uma série de demonstrações relampagas. Monges budistas foram vistos marchando na linha de frente das mobilizações, na esperança de que as forças armadas relutassem mais em realizar a repressão às figuras religiosas.

Nas regiões de Sagaing e Magway, moradores se armaram com rifles de caça caseiros e entraram em confronto repetidamente com as forças do regime. Apesar de muito estarem desarmados e sofrendo grandes baixas, os moradores locais emboscaram comboios militares em cidade após cidade, parando suas forças por vários dias. Dezenas de soldados e policiais foram mortos nos confrontos e muitas outras dezenas ficaram feridas. Uma forte palavra de ordem levantada durante a luta dizia: “Um ataque a qualquer povo é um ataque ao nosso!”

No dia 9 de abril, a luta atingiu o auge na cidade de Bago, a nordeste de Yangon, quando centenas de soldados e policiais atacaram moradores que organizavam barricadas e milícias armadas no leste da cidade. Durante o ataque, vídeos mostram soldados disparando munições letais e explosivas contra barricadas, incluindo granadas e morteiros propelidos por foguetes, enquanto os residentes tentam se defender com rifles caseiros.

Ao final do ataque, o número oficial de mortos foi de 82 vítimas (o pior dia de violência em um único massacre desde o início da resistência ao golpe). Mas Thar Yar Than, membro de uma milícia local, disse por telefone que os números reais estão na casa das centenas. “Eles empilharam os corpos, colocaram em seus caminhões e os levaram para a base”, diz ele. De acordo com Thar Yar, os soldados negaram tratamento médico a dezenas de feridos graves. Ameaçaram as equipes de resgate de atirar caso prestassem socorro. O hospital público mais próximo também foi invadido por soldados e policiais.

“Os feridos estavam amontoados com os mortos. Seus gritos foram ouvidos [entre] os cadáveres”, diz Thar Yar. Milhares de residentes de Bago, incluindo Thar Yar, agora estão se escondendo nas florestas ao redor para escapar da prisão. “As pessoas dizem que a guerra civil está chegando”, diz ele. “Mas para muitos, a guerra civil já chegou”.

Nas últimas semanas, organizações armadas étnicas (OAEs) do país intensificaram os ataques à polícia e aos postos militares. Soldados do Exército da Independência de Kachin (EIK) teriam derrotado vários batalhões da polícia nas áreas da fronteira norte perto da China. Também conquistaram a base de Alaw Bum, que antes estava nas mãos do Tatmadaw. O EIK, desde então, defendeu a base contra os soldados do Tatmadaw, matando mais de 100, incluindo seus oficiais comandantes, e capturando dezenas de desertores após o combate.

O Exército de Libertação Nacional de Karen (ELNK) conquistou a base militar de Thee Mu Hta, em Mutraw, no sudeste de Mianmar, e várias outras OAEs das regiões de Shan e Rakhine forneceram proteção armada para as manifestações. Em um comunicado oficial, ELNK afirmou: “Não podemos aceitar atos desumanos, não apenas no estado de Kayin [Karen], mas também em outras áreas”.

Em retaliação, o Tatmadaw lançou ataques aéreos e bombardeou várias áreas controladas por etnias. Dezenas de pessoas morreram e dezenas de milhares fugiram de suas casas. A maioria dos refugiados estão presos em campos para pessoas deslocadas internamente ao longo da fronteira entre a Tailândia e Mianmar. Muitos tentaram fugir para a Tailândia, mas tiveram o acesso negado ou deportados pelas autoridades tailandesas, que também bloquearam repetidamente suprimentos médicos e alimentos para Mianmar. Dezenas de milhares de deslocados internos estão agora construindo bunkers nos campos, para o caso de o Tatmadaw lançar uma campanha de bombardeio em todos os territórios.

Mas a crescente dependência de ataques aéreos mascara os sinais de fraqueza dentro do Tatmadaw. Nas últimas semanas, um pequeno número de oficiais de escalão médio desertaram ao território da OAE e expressaram seu apoio à revolução. Em uma entrevista ao site de notícias Myanmar-Now.org, um dos desertores, o capitão Lin Htet Aung, disse que as famílias dos soldados estão sendo ameaçadas de tortura e assassinatos em retaliação a insubordinação. De acordo com o capitão Aung, até 75% das tropas deixariam o exército se suas famílias recebessem proteção.

Para consolidar uma nova máquina estatal em Mianmar, caso o Tatmadaw seja derrubado, bem como para ganhar o apoio das OAEs e manter a ameaça de greve de trabalhadores sob controle, o Comitê Representativo de Pyidaungsu Hluttaw (CRPH), um grupo de parlamentares, principalmente de a Liga Nacional pela Democracia (LND), derrubada pelo golpe de 1 de fevereiro, anunciou um Governo de Unidade Nacional (GUN).

O GUN publicou uma carta para reescrever a constituição do país, que deveria consagrar os direitos de todas as minorias étnicas e estabelecer um Exército da União Federal com base em OAEs pré-existentes. Mas a carta não oferece garantias de que o perseguido Rohingya não será excluído de um futuro Estado-nação. Nem oferece qualquer compromisso para desmantelar o Tatmadaw. E o governo em espera liderado pelo LND, representante dos setores liberais da classe capitalista de Mianmar, não tem interesse em construir as forças que muitos acreditam serem necessárias para derrubar o Tatmadaw antes que o conflito se intensifique. Em uma guerra civil altamente militarizada que poderia abrir a porta para a intervenção das potências imperialistas e regionais.

“Os trabalhadores e os que estão na linha de frente nas cidades devem se armar imediatamente”, diz James. Milhares de pessoas deixaram as cidades e agora estão treinando com a OAE em áreas de controle étnico e pretendem retornar aos centros urbanos para combater o Tatmadaw nas próximas semanas. “Mas o que precisamos são centenas de milhares, senão milhões, de trabalhadores armados em greve nas cidades e centros regionais, ocupando seus locais de trabalho e as ruas”, diz ele, explicando que tal situação poderia causar a ruptura das camadas inferiores do Tatmadaw com seus oficiais. “Tanto os generais do Tatmadaw quanto o Governo de Unidade Nacional, junto com seus aliados imperialistas, farão tudo o que estiver ao seu alcance para evitar tal cenário. Mas uma situação de insurreição em massa é o necessário para que nossa revolução tenha uma chance de vencer. O oposto é uma barbárie da qual ainda não vimos o pior”.

(*) Modificamos os nomes para proteger as identidades.


A Revolução da primavera em Mianmar

Artigo escrito por Robert Narai originalmente para a Red Flag, publicação da Socialist Alternative, Austrália, em 27 de fevereiro de 2021.

Greves e manifestações tomaram conta de Mianmar após o Tatmadaw (forças armadas de Mianmar) prendeu a Conselheira de Estado Aung San Suu Kyi e assumiu o governo em 1 de fevereiro. Iniciado por trabalhadores da saúde e estudantes, o movimento de desobediência cívil (MDC) mobilizou massas de pessoas em manifestações de rua que desafiaram a nova junta.

As greves paralisam setores do Estado, incluindo os ministérios de investimentos e transportes, a repartição de finanças e o Departamento Administrativo Geral que supervisiona uma variedade de serviços públicos e funções governamentais – 3/4 dos funcionários públicos de Mianmar estão agora em greve. Setores inteiros, como os de bancos privados, foram fechados e um número crescente de trabalhadores dos bancos estaduais estão aderindo às greves.

Estima-se que 60% dos trabalhadores do setor elétrico estadual entraram em greve. Vários departamentos de energia em Yangon, a maior cidade do país, postaram no Facebook que se recusam a seguir as ordens das forças armadas de cortar a energia durante os ataques noturnos. “Nosso dever é fornecer eletricidade, não cortá-la”, afirmou na postagem.

Trabalhadores ferroviários estaduais também entraram em greve, recusando-se a transportar soldados para serem usados como fura-greves. Durante uma semana, as redes ferroviárias de Yangon e Mandalay, no centro do país, foram fechadas. Em resposta, a tropa de choque foi enviada para as casas dos condutores de trem, mas foi forçada a recuar por uma multidão de estudantes e trabalhadores furiosos.

Nos distritos da classe trabalhadora de Yangon e Mandalay, os residentes montaram “patrulhas noturnas” para se protegerem de bandidos armados que trabalham ao lado das forças de segurança. Antes do início das patrulhas noturnas, os moradores batem com toda força em panelas e frigideiras, uma tradição familiar em Mianmar para afastar “espíritos malignos”, e então cantam o hino de protesto “Kabar Ma Kyay Bu” (“Até o fim do mundo”), cujo as letras prometem uma luta sem fim contra os militares:

Guardaremos rancor até o fim do mundo.A história se escreve com nosso sangue.Revolução!Aqueles que perderam suas vidas na luta pela democracia.Nosso país é uma terra construída por mártires.Guardaremos rancor até o fim do mundo.

O Tatmadaw governou Mianmar durante a maior parte da história moderna do país. Depois de ganhar a independência do domínio britânico em 1947, o país passou por um período de rápido desenvolvimento industrial, acompanhado pela crescente militância da classe trabalhadora, antes que o Tatmadaw, temeroso da ameaça representada por um movimento operário insurgente, tomasse o poder em 1962.

O Tatmadaw governou pelas duas décadas posteriores por meio de um regime capitalista de Estado autoritário que destruiu todos os polos independentes do movimento de trabalhadores. Mas em agosto de 1988, o regime foi abalado por manifestações e greves estudantis exigindo democracia. Aung San Suu Kyi, filha de Aung San, líder militar que dirigiu o movimento pela independência do domínio britânico, assumiu a liderança, desviando o confronto com o regime. O Tatmadaw recuperou o controle da situação, massacrando milhares de civis e queimando ainda vivos os dirigentes do protesto. Muitos dos que escaparam desse destino, incluindo Suu Kyi, foram posteriormente presos ou colocados em prisão domiciliar.

Desde a década de 1990, o Tatmadaw se estabeleceu como uma forte fração da classe capitalista de Mianmar. Por meio de dois conglomerados de propriedade militar, Myanmar Economic Corporation e Myanmar Economic Holding Ltd., o Tatmadaw usou as privatizações para obter o controle das antigas empresas estatais a preços de leilão. Esses conglomerados controlam negócios e investimentos em setores que vão desde a cerveja, tabaco e bens de consumo a minas, moinhos, turismo, desenvolvimento imobiliário e comunicações.

O Tatmadaw redigiu a constituição de 2008 para garantir que continuaria a controlar os principais meios de poder. 1/4 dos assentos em ambas as casas do parlamento são reservados para nomeados por militares, garantindo o bloqueio de qualquer emenda constitucional. O Tatmadaw também mantém o controle de ministérios poderosos, incluindo os ministérios da Defesa e do Interior e, portanto, está isento de qualquer supervisão civil. Suu Kyi, libertada da prisão domiciliar em 2010, e sua Liga Nacional pela Democracia (LND) concordaram em manter esse acordo, apesar das forças armadas permitirem formalmente o governo civil há uma década.

Desde então, o Mianmar tornou-se destino de grandes investimentos de capitalistas do Leste e Sudeste Asiático, principalmente da China, Tailândia, Cingapura e Japão em confecções, agronegócios, mineração e petróleo. O resultado foi a grilagem generalizada de terras nas áreas rurais, o que sustentou a expansão do emprego de baixa renda, informal e precário nos centros urbanos. De acordo com o Departamento do Trabalho de Mianmar, 83% da força de trabalho está no setor informal. Nos últimos anos, essa situação resultou em uma onda de greves e organização de trabalhadores na indústria têxtil, dirigida por mulheres.

No poder, o LND e seus aliados no Tatmadaw tentaram redirecionar a raiva de classe sobre os problemas econômicos alimentando o nacionalismo étnico. Os muçulmanos Rohingya no estado de Rakhine tornaram-se um alvo particular do regime de Suu Kyi, culminando em 2017 com uma campanha de remoções forçadas que incluiu estupros por militares, assassinados e queima de casas. Centenas de milhares de Rohingya foram expulsos de Mianmar para o país vizinho Bangladesh e ainda não retornaram.

Durante o governo do LND, o Tatmadaw acreditava que poderia avançar sua posição pela via eleitoral, o Partido União, Solidariedade e Desenvolvimento. Mas o PUSD provou ser um fracasso completo em termos eleitorais, completamente ofuscado nas pesquisas pelo LND, que conquistou esmagadoras maiorias parlamentares nas eleições de 2015 e 2020.

Combinado com um declínio geral na economia, intensificada pelo início do Covid-19, a decisão do Tatmadaw de assumir o poder se deve ao colapso do equilíbrio entre os governos civil e militar. Mas essas condições também aumentaram as expectativas de toda uma geração que viveu sem uma ditadura militar aberta. O resultado foi a explosão de greves e manifestações que tomam conta do país.

Em resposta ao crescente movimento, o Tatmadaw usou a repressão feroz, incluindo gás lacrimogêneo, canhões de água, cortes de telecomunicações e eletricidade, toque de recolher noturno e prisões em massa, para intimidar os manifestantes e deter os dirigentes da greve. Segundo a Associação de Assistência a Presos Políticos, mais de 700 pessoas foram presas desde 1 de fevereiro. Muitos trabalhadores em setores estrategicamente importantes, como bancos estaduais, usinas de energia, transporte e telecomunicações, são forçados a trabalhar sob a mira de uma arma.

O Tatmadaw também usou força letal. Na capital Naypyidaw, a estudante Mya Thwet Thwet Khine, 20 anos, morreu no hospital após a polícia atirar em sua cabeça. No município de Shew Pyithar, em Yangon, Ko Tin Htut Hein, 30 anos, membro de uma patrulha noturna civil, foi morto a tiros pela polícia em um transporte público. E em Mandalay, Wai Yan Tun, 16 anos, e Ko Min Min Min Ko, 37 anos, foram mortos e 30 outros ficaram feridos quando a tropa de choque atirou munição letal contra residentes locais que protegiam os trabalhadores do estaleiro.

A repressão intensa só conseguiu alimentar o movimento. Em 20 de fevereiro, foi formado um “Comitê de Greve Geral”, que reuniu partidos políticos, sindicatos de trabalhadores, estudantes, agricultores, grupos de mulheres, grupos religiosos, monges, médicos, advogados e grupos de escritores que, com a formação dos comitês de greve, querem acabar com o regime militar, libertar todos os presos políticos, abolir a constituição de 2008 e estabelecer uma união democrática federal que garanta direitos políticos a todas as minorias étnicas, incluindo os Rohingya. Em um comunicado oficial, o comitê de greve disse: “Não podemos perder a força. Se recuarmos agora, o regime militar intensificará sua repressão. É importante unir as organizações e intensificar a greve”.

Em 22 de fevereiro, mais de um milhão de pessoas aderiram à convocação de uma Greve Geral e marcharam na maior mobilização nacional desde o início da resistência ao golpe. Em Yangon, centenas de milhares de manifestantes desceram na Avenida Sule Pagoda, no cruzamento de Hledan e em Myaynigone, retomando esses pontos de reunião depois de terem sido barricados com arame farpado e cobertos pela tropa de choque no fim de semana anterior. Em Mandalay, dezenas de milhares de manifestantes fecharam o distrito comercial central, tornando impossível para a polícia e os militares reprimirem.

A criação de comitês de greve cria um espaço alternativo de poder ao Tatmadaw, onde o movimento pode se auto-organizar nacionalmente. Mas para realmente desafiar o poder econômico e político do Tatmadaw, os comitês de greve precisarão se enraizar em locais de trabalho sob a direção de trabalhadores em greve. Nos próximos dias e semanas, a capacidade da poderosa classe trabalhadora de Mianmar de impor sua vontade sobre a situação, por meio de mais greves que paralisam a economia, será crucial.


Declaração da LIS: Abaixo o Golpe de Estado no Mianmar

Apoiamos a luta dos trabalhadores, camponeses e dos povos oprimidos.


Os protestos iniciados após o golpe de 1º de fevereiro em Mianmar continuam. Os militares alegam fraude nas eleições de novembro [2020] como pretexto para o golpe e prenderam muitos políticos, incluindo Aung San Suu Kyi, uma das politicas mais importantes do país, e o presidente Win Myint. Pelo menos 25 manifestantes foram mortos pela repressão desde o início do golpe, 18 deles enquanto esta declaração estava sendo escrita. O exército também ameaça as massas que vão às ruas com 20 anos de prisão.

Apesar das ameaças, os protestos contra o golpe continuam com a participação massiva dos trabalhadores. Com convocatória de greve realizada pelos partidos políticos da oposição no dia 22 de fevereiro, a vida paralisou em quase todas as grandes cidades do país. A mídia de Mianmar afirma que os protestos de 22 de fevereiro são os maiores da história do país. Com a massificação e radicalização dos protestos, o governo golpista também aumentou a violência nas ruas e o uso de balas de chumbo contra as massas. Os cortes na Internet também são cada vez maiores. A principal reivindicação das massas que participam dos protestos é a libertação de Suu Kyi e outros políticos detidos, e que os militares entreguem o poder a uma administração civil.

Conceitos como democracia, direitos humanos e liberdade são sonhos longínquos dos habitantes de Mianmar (antiga Birmânia), reprimidos pelos colonialistas até meados do século XX e posteriormente por golpes militares. Embora passos importantes tenham sido dados para quebrar a hegemonia do exército na política sob a liderança de Suu Kyi, que passou muitos anos na prisão, em prisão domiciliar e foi apoiada por países ocidentais nesse processo, os avanços se mostraram bastante fracos. Na verdade, a constituição de Mianmar foi projetada para preservar o poder do exército na arena política. Independentemente do resultado das eleições, o exército tem uma cota de 25% dos deputados no parlamento. Além disso, os ministérios da defesa, do interior e das fronteiras são controlados pelos militares. O sucesso da Liga Nacional para a Democracia (NLD) de Suu Kyi nas eleições de novembro parece ter acionado o exército em proteger sua influência na arena política.

Por outro lado, os atores da política civil e militar mantêm a mesma linha política em relação a diferentes elementos étnicos e religiosos, como os massacres de muçulmanos Rohingya em 2017. Quando Suu Kyi, que é visto como o pioneiro da democratização burguesa de o país, apoiado o exército nesses massacres, as relações com o Ocidente se deterioraram. Ela foi até mesmo intimada a testemunhar pelo Tribunal Penal Internacional. Embora Suu Kyi não pudesse ser diretamente chefe de Estado devido ao marido ser cidadão britânico, a partir de 2015, quando ela dirigiu ativamente a política do país, a corrupção que envolveu ministros do governo e o não cumprimento do que foi prometido ao público fez com que sua popularidade fosse abalada. Esta curta experiência de “democratização” revelou o quão incompetentes e limitados são os setores burgueses.

Hoje, o destino do país depende em grande parte da competição das potências imperialistas no sul da Ásia. Superpotências globais como China e Estados Unidos competem por Mianmar, que é fundamental para controlar a Baía de Bengala, um importante destino do comércio internacional no Oceano Índico. A China manteve boas relações com os militares de Mianmar por muitos anos e conseguiu estabelecer boas relações com Suu Kyii, que se desentendeu com o Ocidente. Mianmar ocupa um lugar importante para a “Iniciativa de Cinturões e Estradas”, à qual a China dar particular atenção em termos de expansão de sua hegemonia imperialista. Portanto, mais do que quem está no poder e quais crimes ele cometeu no país, o principal problema da China é manter a estabilidade política e manter as relações funcionando. De fato, o veto da China e da Rússia à decisão do Conselho de Segurança da ONU de condenar o golpe mostra que a administração militar terá uma relação calorosa com Pequim.

Enquanto os Estados Unidos e os países da União Europeia condenam o golpe, repetem os refrãos familiares: democracia, direitos humanos, resolução de problemas dentro dos limites constitucionais… Os países ocidentais viam Suu Kyi como uma alternativa para quebrar o poder político do exército, apesar de todas as suas falhas, e apoiou suas políticas sujas contra as minorias étnico-religiosas. EUA e UE tentarão criar uma nova alternativa dentro do país enquanto o exército expurga Suu Kyi. No entanto, sabemos que o objetivo principal será impedir que o país se instale na órbita da China, e impossibilitar um futuro livre e democrático para o povo de Mianmar.

O que aconteceu em Mianmar mostra mais uma vez que a democratização nos países atrasados ​​é uma tarefa muito grande que os setores burgueses não podem cumprir. O futuro dos trabalhadores e das identidades étnico-religiosas oprimidas não mudará, independentemente de quem esteja no poder. A extensão da exploração e opressão pode variar, mas as contradições existentes permanecerão. As profundas contradições econômicas e conflitos étnico-religiosos que se acumularam no Mianmar e outros países do sul da Ásia só podem ser eliminadas pela luta de classes internacional liderada por uma alternativa internacionalista e socialista.

A classe trabalhadora, que lutam contra o golpe com suas greves gerais e manifestações de rua, deve agir independentemente de Suu Kyi e do NLD, que são figuras políticas capitalistas, representantes dos patrões de Mianmar e das forças imperialistas. Além disso, os antecedentes dessas figuras na luta pela democracia são bastante sombrios.

Os trabalhadores devem desenvolver comitês de greve que tem formado o movimento grevista e se tornar uma força independente para tomar o destino de Mianmar em suas próprias mãos. Os trabalhadores, camponeses, jovens e minorias oprimidas não possuem futuro no sistema capitalista. O atual movimento anti-golpe não pode se limitar apenas às reivindicações democráticas. Para conseguir uma mudança fundamental além de derrotar os conspiradores do golpe, as propriedades dos capitalistas, a burocracia militar e os monopólios estrangeiros devem ser expropriadas e uma luta pelo poder dos trabalhadores em Mianmar deve ser travada.

28 de fevereiro de 2021

Myanmar coup: What′s in store for democracy in Southeast Asia? | Asia| An  in-depth look at news from across the continent | DW | 09.02.2021

Myanmar coup: UN warns Myanmar junta of 'severe consequences'

Myanmar Coup: What to Know About the Protests and Unrest - The New York  Times

Myanmar coup: junta leader calls for end to protests in first official  address as sanctions loom | South China Morning Post

Myanmar coup: Joe Biden threatens to resume sanctions | Myanmar | The  Guardian