Com Trotsky até o fim

Por Joe Hansen

81 anos após o assassinato de Leon Trotsky, publicamos o relato de Joe Hansen, secretário pessoal do revolucionário russo no México, que prendeu e interrogou o assassino da GPU, Ramón Mercader, antes de ser detido pela polícia mexicana.

Desde o ataque de metralhadora pela GPU ao quarto de Trotsky em 24 de maio, a casa em Coyoacán havia sido praticamente transformada em uma fortaleza. A guarda foi ampliada e mais bem armada. Foram instaladas portas e janelas à prova de balas. Um reduto foi construído com telhado e piso à prova de bombas. No lugar da velha porta de madeira, onde Robert Sheldon Harte foi surpreendido e sequestrado pelos perseguidores da GPU, foram colocadas portas duplas de aço controladas por interruptores elétricos. Três novas torres à prova de balas dominavam não apenas o pátio, mas toda a vizinhança ao seu redor. Emaranhados de arames farpados e redes de bombas estavam sendo preparados. Toda essa construção foi possível graças aos sacrifícios dos simpatizantes e militantes da Quarta Internacional, que fizeram de tudo para protegê-lo, sabendo que Stalin com certeza tentaria outro ataque mais desesperado após o fracasso em 24 de maio. O governo mexicano, o único país do mundo que concordou em dar asilo a Trotsky em 1937, triplicou o número de guardas que se revezavam do lado de fora da casa, fazendo tudo ao seu alcance para salvaguardar a vida do exilado mais famoso do mundo. Apenas a forma do novo ataque era desconhecida. Outro ataque de metralhadora mais feroz? Bombas? Cassetetes? Envenenamento?

20 de agosto de 1940

Eu estava no telhado, perto da torre da guarda principal com Charles Corneü e Melquíades Benítez. Estávamos conectando uma sirene potente ao sistema de alarme para ser usada no próximo ataque da GPU. Ao entardecer, entre 17h20 e 17h30, chegou Jacson, que conhecíamos como apoiador da Quarta Internacional e marido de Sylvia Ageloff, ex-integrante do Socialist Workers Party [SWP – Partido Socialista dos Trabalhadores], em seu sedã Buick. Em vez de estacionar com a frente do carro voltado para a casa, como era seu costume, deu uma volta completa na rua, estacionando o carro paralelo à parede, com o nariz voltado para Coyocán. Quando saiu do carro, acenou para nós e gritou: “Sylvia está aqui?”. Ficamos um pouco surpresos. Não sabíamos que Trotsky havia citado Sylvia e Jacson, mas relacionamos nossa falta de conhecimento a um esquecimento de Trotsky, o que era comum em relação a essas questões. “Não”, eu disse a Jacson, “espere um minuto”. Assim, Cornell operou os controles elétricos e as portas duplas, e Harold Robins cumprimentou o visitante no pátio. Jacson tinha uma capa de chuva cruzada no braço.

Era a estação das chuvas e embora o sol brilhasse sobre as montanhas do sudoeste havia nuvens escuras que ameaçavam tempestade.

Trotsky estava no quintal alimentando coelhos e galinhas (era sua maneira de se exercitar um pouco por causa da vida fechada que era forçado a levar). Esperávamos que, como era seu costume, Trotsky não entrasse em casa antes de terminar de alimentá-los ou até Sylvia chegar. Robins estava no quintal. Trotsky não tinha o hábito de ver Jacson sozinho.

Melquíades, Corneü e eu continuamos trabalhando. Nos dez ou quinze minutos seguintes, fiquei sentado na torre principal, escrevendo os nomes dos guardas em etiquetas brancas que seriam colocadas nos interruptores que conectavam seus quartos ao sistema de alarme.

Um grito terrível cortou a calma da tarde. Um grito longo e moribundo, quase um soluço. Isso me fez pular de pé, com um calafrio que gelou meus ossos. Corri para chegar ao telhado desprevenido. Foi um acidente de um dos dez trabalhadores que estavam reformando a casa? Sons de combates violentos vinham do escritório do Velho e Melquíades apontava um rifle para a janela abaixo. Trotsky ficou visível por um momento com sua jaqueta azul de trabalho, lutando corpo a corpo com alguém.

“Não atire!”, Gritei para Melquíades, “você pode acertar o Velho!”. Melquiades e Corneü ficaram no telhado cobrindo as saídas do pátio. Liguei o alarme geral e desci para a biblioteca. Quando entrei pela porta que ligava a biblioteca à sala de jantar, o Velho cambaleou alguns metros para fora do escritório, com sangue escorrendo pelo rosto.

– “Veja o que eles fizeram comigo!”, disse ele. 

Ao mesmo tempo, Harold Robins entrou pela porta norte da sala de jantar com Natália o seguindo. Natália, colocando os braços em volta de Trotsky, levou-o para a varanda. Harold e eu corremos atrás de Jacson, que estava parado no escritório ofegando com o rosto perturbado, os braços caídos e uma pistola automática pendurada em sua mão. Harold estava mais perto dele. “Cuide dele”, eu disse, “vou ver o que aconteceu com o Velho.” Eu não tinha acabado de me virar quando Robins jogou o assassino ao chão. Trotsky estava rastejando para a sala de jantar. Natália, chorando, tentou ajudá-lo. “Veja o que eles fizeram”, disse ela. Quando ela abraçou o Velho, ele desabou perto da mesa da sala de jantar.

O ferimento em sua cabeça parecia superficial à primeira vista. Eu não tinha ouvido nenhum tiro. Jacson deve ter batido nele com algum instrumento. “O que aconteceu?”, perguntei ao Velho.

“Jacson atirou em mim com um revólver. Estou gravemente ferido… sinto que agora é o meu fim”. “É apenas uma ferida superficial. Você vai se recuperar”, tentei dar confiança a ele.

“Conversamos sobre estatísticas francesas”, respondeu o Velho.

“Ele bateu em você por trás?”, perguntei-lhe. Trotsky não respondeu.

“Ele não atirou em você”, eu disse, “Não ouvimos nenhum tiro. Ele atingiu você com algo”.

Trotsky parecia hesitar. Apertou minha mão. Entre as frases que trocamos, falou com Natália em russo. Ele levou a mão dela continuamente aos lábios. Subi de volta no telhado e gritei com a polícia do outro lado da parede; “Chame uma ambulância!” Eu disse a Corneü e Melquíades: “É um ataque. Jacson…”. Naquele momento, meu relógio de pulso marcava 4:30 da tarde. Estava ao lado do Velho novamente e Corneü estava comigo. Sem esperar a ambulância da cidade, decidimos que Corneü procuraria o Dr. Dutren, que morava perto e cuidava da família. Como nosso carro estava trancado na garagem, protegida por portas duplas, Corneü decidiu usar o carro de Jacson que estava parado na rua.

Quando Corneü saiu da sala, sons de luta foram ouvidos novamente vindos do escritório onde Robins estava segurando Jacson.

“Diga aos eles para não matá-lo!”, disse o Velho. “Ele deve falar”.

Deixei Trotsky com Natália e fui ao pátio. Jacson estava deitado na mesa próxima. No chão havia um instrumento ensanguentado, que a primeira vista parecia uma picareta, mas com a parte de trás em forma de machado. Eu me lancei na luta contra Jacson, acertando-o na boca e na mandíbula abaixo da orelha, quebrando minha mão.

Quando Jacson recuperou a consciência, gemeu. “Eles prenderam minha mãe… Sylvia Ageloff não teve nada a ver com isso… Não, não foi a GPU. Não tenho nada a ver com a GPU…”. Ele enfatizou fortemente as palavras que o separariam da GPU, como se de repente se lembrasse que o roteiro de seu papel o ligava a um comando de cima. Mas a aquela altura, já havia entrado em contradição. Quando Robins derrubou o assassino, Jacson evidentemente acreditou que era seu último momento. Ele se contorceu de terror; palavras que ele não conseguia controlar escaparam de seus lábios: “Eles me fizeram fazer isso”. Ele dizia a verdade, a GPU o obrigou a fazer isso.

Cornell irrompeu no escritório, “as chaves não estão no carro dele.” Tentou encontrar as chaves nas roupas de Jacson, mas sem sucesso. Enquanto ele procurava, corri para abrir as portas da garagem. Em alguns segundos, Cornell estava a caminho com nosso carro. 

Esperamos que Cornell voltasse – Natália e eu ajoelhadas ao lado do Velho, segurando suas mãos. Natália havia enxugado o sangue de seu rosto e colocado gelo em sua cabeça, que já estava inchando.

“Ele bateu em você com uma picareta”, eu disse ao Velho. “Ele não atirou em você. Tenho certeza de que é apenas uma ferida superficial”.

“Não”, ele respondeu, “sinto aqui” (indicando seu coração) “que desta vez eles conseguiram”.

Tentei tranquilizá-lo: “Não, é apenas um ferimento superficial; você vai melhorar”.

Mas o Velho apenas sorriu levemente com os olhos. Ele havia entendido…

“Cuide da Natália. Ela está comigo há muitos e muitos anos”. Ele apertou minha mão enquanto a olhava, parecia absorver os seus traços, como se a estivesse deixando para sempre – nesses segundos fugazes comprimindo todo o passado em um último olhar.

“Nós vamos”, eu prometi. Minha voz pareceu falhar, entendendo que aquele era realmente o fim. O Velho apertou nossas mãos repetidamente, de repente com lágrimas nos olhos. Natália chorou, curvando-se sobre ele, beijando sua mão.

Quando o Dr. Dutren chegou, os reflexos do lado esquerdo do Velho já estavam falhando. Alguns momentos depois, a ambulância chegou e a polícia entrou no escritório para arrastar o assassino.

Natália não queria que o Velho fosse levado para um hospital – foi em um hospital em Paris que seu filho, Leon Sedov, foi morto havia apenas dois anos. Por um ou outro momento, o próprio Trotsky, caído no chão, ficou em dúvida.

“Nós iremos com você,” disse a ele.

“Deixo que você decida”, disse-me ele, como se agora entregasse tudo a quem o rodeava, como se todos os dias de tomada de decisões tivessem acabado.

Antes de colocarmos o Velho em uma maca, ele sussurrou novamente: “Quero que tudo que eu possuo fique com a Natália”. Então, com uma voz que atraiu insuportavelmente todos os sentimentos mais profundos e ternos dos amigos ajoelhados ao seu lado… “Você vai cuidar dela…”

Natália e eu o acompanhamos naquela triste carona até o hospital. Sua mão direita vagou sobre os lençóis que o cobriam, tocou a bacia de água perto de sua cabeça e encontrou Natália. As ruas já estavam lotadas de gente, todos os trabalhadores e os pobres enfileirando-se enquanto a ambulância soava atrás de um esquadrão da polícia de motocicletas em meio ao tráfego a caminho do centro da cidade. Trotsky sussurrou, puxando-me insistentemente para perto de seus lábios para que eu não deixasse de ouvir:

“Ele era um assassino político. Jacson era membro da GPU ou fascista. Provavelmente a GPU”. Impressões sobre Jacson estavam passando pela mente do Velho. Nas poucas palavras que lhe restavam, ele me dizia o curso que achava que deveria ser seguido em nossa análise da agressão, com base nos fatos já em nosso poder: – A GPU de Stalin é culpada, mas devemos deixar em aberto a possibilidade de que foram auxiliados pela Gestapo de Hitler. Ele não sabia que o cartão de visita de Stalin na forma de uma “confissão” estava no bolso do assassino.

As últimas horas

No hospital, os médicos mais respeitados do México se reuniram.

O Velho, exausto, ferido de morte, com os olhos quase fechados, olhava na minha direção da estreita cama do hospital, movia debilmente a mão direita. “Joe, você… tem um… caderno?”. Quantas vezes ele me fez essa mesma pergunta! – mas em tons vigorosos, com a insinuação sutil de que gostava, às nossas custas, da “eficiência americana”. Agora sua voz estava confusa, as palavras mal distinguíveis. Ele falou com grande esforço, lutando contra a escuridão que o invadia. Me inclinei contra a cama, seus olhos pareciam ter perdido todo aquele rápido lampejo de inteligência tão característico do Velho. Seus olhos estavam fixos, como se não estivesse mais ciente do mundo, e ainda assim eu sentia sua enorme força de vontade segurando a escuridão que lhe persseguia, recusando-se a ceder a seu inimigo até que ele tivesse cumprido uma última tarefa. Lentamente, hesitante, ele ditou, escolhendo as palavras de sua última mensagem para a classe trabalhadora, dolorosamente em inglês, uma língua que era estranha para ele. Em seu leito de morte, não esqueceu que sua secretária não falava russo!

“Estou próximo da morte, devido ao golpe de um assassino político… me derrubou no meu quarto. Lutei com ele… nós… entramos… conversamos sobre estatísticas francesas… ele me impressionou… Por favor, digam aos nossos amigos… Estou certo… da vitória da IV Internacional… continuem”.

Tentou falar mais, mas as palavras eram incompreensíveis. Sua voz morreu, os olhos cansados ​​se fecharam. Ele nunca recuperou a consciência. Isso aconteceu cerca de duas horas e meia depois que o golpe foi desferido.

Foi tirado um raio-X do ferimento e os médicos decidiram que  era necessária uma operação imediata. O cirurgião responsável pelo hospital realizou o delicado trabalho de trepanação na presença dos principais especialistas mexicanos e dos médicos de família. Eles descobriram que a picareta havia penetrado sete centímetros, destruindo um tecido cerebral consideravelmente. Alguns desses médicos declararam o caso absolutamente sem esperança. Outros deram ao Velho uma chance de lutar.

Por mais de vinte e duas horas após a operação, o desespero se alternou com a esperança de que ele sobreviveria. Nos Estados Unidos, amigos providenciaram o envio de um especialista em cérebro mundialmente famoso, Dr. Walter E. Dandy, da Johns Hopkins, de avião. Hora após hora de agonia, ouvimos a respiração pesada do Velho enquanto estava deitado na cama do hospital. Com a cabeça raspada e enfaixada, tinha uma semelhança surpreendente com Lenin. Pensamos nos dias em que eles dirigiram a primeira revolução vitoriosa da classe trabalhadora. Natália recusou-se a sair da sala, recusou-se a comer, observou com os olhos secos, as mãos cerradas, os nós dos dedos brancos, as horas se passando uma a uma naquela longa e horrível noite e no interminável dia seguinte. Os relatórios dos médicos notavam sinais favoráveis, uma melhora ocasional e, até o último momento, ainda sentíamos que de alguma forma este homem que havia sobrevivido às prisões do czar, exílios, três revoluções, os julgamentos de Moscou, sobreviveria a este golpe rasteiro de Stalin.

Mas o Velho tinha mais de sessenta anos. Ele estava doente há vários meses. Às 19h25 em 21 de agosto, entrou em crise final. Os médicos trabalharam durante vinte minutos, utilizando todos os métodos científicos à sua disposição, mas nem mesmo a adrenalina conseguiu reanimar o grande coração e a mente que Stalin destruíra com uma picareta.

Relato publicado originalmente no Fourth International, Vol. 1, Num. 5, em outubro de 1940.