Nicarágua por dentro: Dialogar com o ditador?

Nove meses após a insurreição de abril na Nicarágua, os cenários mudaram de maneira significativa, tem sido um processo em constante movimento na correlação de forças em resistência. Tem sido meses muito duros, marcados pela dor e a morte. Neste momento, na Nicarágua, tudo está por se definir. Então é necessário repensar certos debates para entender o rumo que tomou o processo de luta contra a ditadura… O que buscamos com este artigo não é apenas informar, mas também contribuir com ideias ao processo de luta e reflexão na Nicarágua. O panorama é distinto ao do início dos protestos de abril, e apesar de que o governo de Ortega se encontra totalmente isolado a nível internacional e se mantêm no poder unicamente pelo uso da força e a instauração da doutrina do terror; a correlação de forças populares todavia não ressurgir numa estratégia revolucionária de resistência popular, mas tampouco perde seu espírito combativo.

 

A RUPTURA DENTRO DAS BASES

 

O regime tem começado a mostrar os primeiros sintomas de desintegração dentro de suas bases. Em novembro de 2018 se deu a escandalosa renuncia de Ligia Gómez, ex-gerente de Pesquisas Econômicas do Banco Central da Nicarágua, e secretária política da FSLN; que denunciou desde o exílio, com riqueza de detalhes as fases e formas da repressão impulsionada a partir de cada ministério sob direção de Rosario Murillo, vice-presidente e esposa de Ortega. A partir deste momento, cada vez são mais funcionários e de mais alto escalão que paulatinamente vão se distanciando e denunciando a maquinaria repressiva que impera no país centro-americano.

 

Tal é o caso do superintendente de bancos Víctor Urcuyo, cuja renuncia foi apresentada em 20 de dezembro de 2018. Depois foi o ex-magistrado da Suprema Corte de Justiça, Rafael Solís Cerda, que é considerado um dos principais operadores políticos da FSLN. Em 2009 ele foi o responsável por emitir a resolução judicial que permitiu a reeleição de Ortega em 2011. Sua renuncia ao poder judicial, em janeiro de 2019, foi feita fora da Nicarágua por meio de uma carta pública intitulada “Carta de renuncia e denuncia”, onde se refere aos crimes de lesa-humanidade cometidos pelo governo a partir dos protestos de abril, e expõe Daniel Ortega como ditador; e acrescenta que “a separação de poderes na Nicarágua acabou, a concentração de poder está neles, nessas duas pessoas”. Assim mesmo, Solís advertiu sobre a falta de vontade de Ortega e Murillo para deixar o poder e a matança.

 

O que significam estas renuncias no meio da crise? Não é um fato menor, por um lado, a ditadura parece estar desmoronando e perdendo forças em seu interior. Estes funcionários que demitem são testemunhas chaves da corrupção e o funcionamento do regime Ortega-Murillo. São peças importantes dento do tabuleiro instável da ditadura. Estas demissões confirmam o nível de ameaças dentro do partido e o temor que sentem os funcionários do regime que sabem que ele irá desmoronar; mas o clamor popular é claro, “celebramos a renuncia mas não esquecemos”, todos os cúmplices do regime deverão ser investigados e julgados para pagar pelos seus crimes.

 

A SAÍDA DIPLOMÁTICA QUE TODOS QUEREM, MENOS O POVO NICARAGUENSE QUE ESTÁ NA RESISTÊNCIA

 

Outro avanço importante tem sido a apresentação do último informe do Grupo Interdisciplinar de Peritos Independentes, da CIDH, cujo resultado de sua investigação na área, condena crimes de lesa-humanidade na Nicarágua, sob comando de Ortega através da Policia Nacional e forças paraestatais apoiadoras do governo da FSLN. Com estas declarações apresentadas ante uma seção extraordinária na OEA no dia 10 de janeiro de 2019, se confirmou em nível diplomático o que o povo nicaraguense vem denunciando desde abril de 2018: na Nicarágua há uma ditadura que mata, viola, prende, tortura e desaparece com quem levanta sua voz e suas ideias para exigir liberdade, democracia e justiça. A apresentação deste informe abriu caminho à ameaça da aplicação do artigo 20 da Carta Democrática Interamericana, com a qual poderia suspender a Nicarágua como país membro da Organização dos Estados Americanos.

 

Esta instância diplomática não é inocente, e tem intenções claras, buscar uma saída negociada para a crise nicaraguense através da pressão internacional. Mas atenção, é necessário estabelecer posturas quanto a saída da ditadura e as supostas tentativas que querem promover a partir dos espaços de poder hegemônicos na Nicarágua; a igreja católica por meio da Conferência Episcopal da Nicarágua, da empresa privada mediante o COSEP e a mesma ditadura orteguista através das instituições judiciais e o poder legislativo.

 

Nas últimas semanas se tem insistido através de uma campanha midiática, impulsionada sobre tudo pelo setor privado, que lidera a Aliança Cívica, na restauração da mesa de “Diálogo Nacional”, onde esperam apelas para a boa vontade do ditador, na ânsia por resultados distintos mas fazendo sempre o mesmo. Lembramos que foi esse setor que não fez tudo o que pôde para tirar o ditador no momento em que tiveram a chance, hoje vem e insistem em dar espaço ao regime para se oxigenar, tal como aconteceu em maio-junho de 2018. É preciso deixar claro que o povo nicaraguense, as mães, os presos e exilados não estão dispostos a dialogar com assassinos nem cúmplices da ditadura. A saída deve ser de caráter popular, e criar as condições de julgamento e punição aos cúmplices e perpetradores do massacre ao povo nicaraguense.

 

Chamamos a mais ampla solidariedade dos povos da América e do mundo para apoiar a luta e a autodeterminação de todas e todos os nicaraguenses que apostam pela refundação do Estado e a busca pela justiça, mas para isso a saída dos ditadores é fundamental.

 

O MÉXICO SE OFERECE PARA MEDIAR A CRISE NICARAGUENSE 

 

Apesar do fato de que o México se absteve em opinar a favor do povo Nicaraguense na OEA e condenar os crimes de lesa-humanidade da ditadura de Ortega-Murillo; o subsecretário para a América Latina e o Caribe da Secretaria de Relações Exteriores (SRE), Maximiliano Reyes, manifestou ao Senado mexicano, que o governo de Lopez Obrador se ofereceu como mediador e facilitador do diálogo para ajudar a resolver os conflitos internos que se vivem na Nicarágua com “respeito a sua autodeterminação” e “sob o principio de não-intervenção”.

 

Esta oferta expõe os interesses sociopolíticos do México sobre a América Central em crise, mediar o conflito nicaraguense seria influir também na crise do istmo inteiro, as caravanas migrantes do triângulo norte para o México e Estados Unidos, e talvez, manter as relações econômicas das transnacionais mexicanas na região.

 

Tampouco podemos afirmar que a abstenção mexicana na OEA, seja uma declaração de apoio à Ortega ainda que siga reconhecendo seu governo de pseudo-esquerda como legítimo; o problema atual é que ainda há setores que não aceitam que a saída do regime é o primeiro passo para um diálogo, um diálogo sem Ortega. A primeira ação desses interlocutores e do povo em geral deverá ser o desconhecimento de Ortega como figura presidencial, como “autoridade”, e esse ponde é inegociável.

 

As condições para o diálogo não tem a correlação de forças que teve em maio-junho de 2018, necessárias para que as demandas populares sejam postas sobre a “mesa de negociação”. Neste momento, já não contamos com a resistência em trancamento de estradas e barricadas, nem tampouco a mobilização massiva nas ruas. A maioria das lideranças estudantis, feministas e camponesas se encontram presas, assassinadas ou no exílio, e a repressão, a violência e a perseguição continuam; então, o que mudaria nesta ocasião, por quem se autoproclamam porta-vozes do povo para negociar uma agenda desconhecida com os representantes da ditadura? O problema não é o diálogo em si, senão as agendas e os interlocutores propostos, que legitimam um sistema totalmente viciado e caduco em um contexto que não favorece a resistência popular.

 

Para nós a anistia não é uma opção. Acreditamos que é necessário o diálogo, sim, mas como ferramenta de debate a nível local, aberto e inclusivo, voltado para as bases populares, comunitárias e territoriais, que retomem as assembleias de bairros e discutam todos os temas de interesses imediatos como a liberação de todxs xs presxs políticos da ditadura, anulação de todos os julgamentos em andamento, repatriação dxs exiladxs. E a médio prazo, pensar coletivamente em alternativas independentes de transição política uma vez derrotada a ditadura, políticas de memória e acompanhamento à familiares das vítimas e as mães de abril com garantias de não repetição e acesso à justiça real.

 

Acreditamos que na Nicarágua é necessário um processo de Assembleia Constituinte com verdadeira representação dos interesses do povo. Já ficou demonstrado na tentativa de Diálogo Nacional – que se instaurou em Maio do ano passado – que existem alguns setores que estão buscando apenas como manter o mesmo sistema que vinha implementando desde antes da rebelião de abril. Na Nicarágua, hoje as juventudes junto a outros setores sociais temos a oportunidade de fazer uma revolução definitiva que não apenas retire do poder a ditadura de Ortega mas que também apontem as condições para refundação do País. Todos os problemas estruturais da Nicarágua devem se discutir em nível nacional para gerar uma rota de mudança que melhor as condições de vida do povo nicaraguense, e isso definitivamente não passará por nenhum mesa liderada pela empresa privada e os grupos de poder factual na Nicarágua.

 

Por Ariana McGuire Villalta
Nicaraguense exilada