Espanha: Há 40 anos da Constituição de ’78: Uma visão crítica e a necessidade de mudanças profundas

Espanha: Há 40 anos da Constituição de ’78: Uma visão crítica e a necessidade de mudanças profundas

 

Introdução

No dia 20 de novembro de 1975 morreu Francisco Franco. Foi o começo oficial da chamada “transição”, a passagem de um regime ditatorial para um democrático. Em 1978 veio à luz a Constituição vigente como norma suprema para o ordenamento jurídico do Estado espanhol. Foi ratificada por um referendo em 6 de dezembro, entrou em vigor no dia 29 do mesmo mês e logo foi sancionada pelo rei Juan Carlos I.

 

De tal forma, o que se pode esperar de uma Constituição que foi fruto da dita transição, que teve como cabeça a elite política do franquismo, que controlava o processo de reforma? O que se pode esperar de uma Constituição que nasce controlada pelos mesmos dirigentes do regime ditatorial anterior?

 

Estabeleceu a monarquia parlamentária como forma de governo, com uma organização territorial baseada em municípios, províncias e comunidades autônomas. O rei é o chefe do Estado, mediador do funcionamento das instituições e assume a representação internacional. Estes são os pilares que, junto ao Poder Judicial, o Legislativo e as forças repressivas, constituem o regime institucional burguês.

 

Ao se aproximar do aniversário, o presidente Pedro Sánchez (PSOE) encabeça a apresentação de distintos eventos de comemoração. Se realizam debates entre ex-presidentes do PSOE e PP, Ciudadanos constroem sua própria agenda igual que o VOX. Inclusive apontam que é necessário mudar aspectos parciais, em sua maioria mais reacionários, mas que não se pode porque não há consenso. Mais além de suas disputas eleitorais, estão unidos por um ponto: são fieis defensores do regime de ’78 e da transição.

 

Não compartilhamos esse posicionamento e acreditamos lícito formular várias questões que induzem ao intercambio de opiniões: Foi modelada a transição? O regime de ’78 pode dar respostas progressivas? O Franquismo segue infiltrado nas instituições? Quais setores sociais favorece? A justiça é independente? Para que serve a monarquia? Como se consagrou o bipartidarismo? Há uma saída distinta? Estás são algumas das perguntas que responderemos desde uma visão crítica e o convencimento da necessidade de realizar mudanças profundas. Nesta ocasião, abordaremos alguns feitos históricos até o presente, incorporando duas notas sobre assassinatos políticos e repressão na transição: Yolanda González e Gustau Muñoz.

 

Por outro lado, completamos esta edição do SOL DIGITAL com notas sobre o balanço das eleições andaluzas, a movimentação de 25-N, a Cúpula do G20 na Argentina, os enfrentamentos Rússia-Ucrânia e a rebelião dos “coletes amarelos” na França, entre outros temas.

 

 

 

Da derrota à ditadura

As eleições de fevereiro de 1936 lhe deram a vitória à Frente Popular, conformado por partidos republicanos, incluindo ERC, o PSOE e o Partido Comunista da Espanha (PCE). A direita, tomou o resultado como uma declaração de guerra. Em 17 de julho de 1936 aconteceu um levantamento militar franquista em Melilla, um dia depois se estendeu ao resto da península e aos arquipélagos. O golpe triunfou em algumas zonas e fracassou em uma parte do país (Astúrias, País Basco, Cantábria, Múrcia, Catalunha, Madri, foram algumas delas). A insurreição mal teve apoio popular, foi baseada nas forças militares. A revolta teve distintos resultados de acordo com a região do país, que em um momento ficou dividido.

 

Depois disso, rupturas foram provocadas nas estruturas da República, e o poder ficou nas mãos dos comitês de trabalhadores organizados em partidos políticos e sindicatos, sem nenhum poder centralizado.

Apesar do grande avanço popular e dos trabalhadores, somado com a força das brigadas internacionais, Franco teve alianças de grande peso e terminou derrotando os republicanos depois das batalhas de: Guernica, Ebro e Catalunha. Em março as tropas franquistas chegaram a Madrid e em 1º de abril terminou a guerra, que seria seguida por uma ditadura que substituiria o ensaio do período democrático da Segunda República.

 

A partir de 1939 o franquismo e a Espanha, se estabeleceram em um regime caracterizado pela concentração do poder político em Franco. Anticomunismo, anti-parlamentarismo, anti-liberalismo, nacional catolicismo, tradicionalismo, militarismo, todos traços fascistas, que tiveram a violência como meio político. A consolidação do regime se deu com estas bases, seguidos de uma série de transformações e fracassos econômicos.

 

A consolidação deste processo contra revolucionário coincidiu com o início de uma etapa de derrotas e retrocessos dos regimes fascistas e nazis europeus, que mostra a particularidade da situação da Espanha.

 

Os novos traços do franquismo

Durante 40 anos, a ditadura militar impulsou níveis de exploração brutais sobre a classe trabalhadora no Estado espanhol. No fim dos anos ’60 e princípios dos ’70 a oposição se intensificou e o movimento trabalhista e estudantil foi se fortalecendo e ainda que tenha criado uma rede social de protestos, não conseguiu derrota-la.

 

Com a morte de Franco em 1975 entrou pela janela uma rajada de ar fresco, os trabalhadores sentiram que era o momento para produzir uma quebra com o passado e voltaram às ruas. Haviam motivos para o otimismo: em 1974 tinha acontecido a Revolução dos Cravos em Portugal, que acabou com a ditadura de Salazar que governava desde 1926.

 

Começou uma forte ascensão da luta de classes, com uma onda de greves por aumentos salariais e por reivindicações democráticas, como a liberdade sindical e a liberdade dos presos políticos. Também ressurgiu a luta das nacionalidades. O regime cambaleou, mas finalmente conseguiu sobreviver, se readaptando parcialmente e perdurando no tempo. Conseguiram fazer isso graças à colaboração do PCE e do PSOE que operaram ativamente para desarticular a mobilização e garantir a sede de lucros do capitalismo.

 

O PCE junto à central sindical Comissões Trabalhistas (CC.OO.), que havia sido fundada durante a ditadura, o PSOE e a UGT, pactuaram com o rei Juan Carlos Borbón e as forças políticas franquistas o futuro regime político. Isto foi endossado pelo Rei como chefe de estado, garantindo a continuidade do Exército, a Guarda Civil e a Polícia genocidas com sua estrutura hierárquica. Não houve depuração e se fechou o caminho para uma investigação transparente e o julgamento e sentenças aos repressores, torturadores e assassinos franquistas.

 

O acordo foi consagrado, finalmente, com as eleições de 1977. Então, a pergunta é: Foram constituintes as eleições de ’77? Na convocatória não se expressava que seria realizado um processo constituinte, de fato, eliminaram as partes da Lei da Reforma Política que se referiam ao propósito constituinte. Que, diziam exatamente “o significado democrático, apenas seria adquirido pela vontade da maioria do povo; de um povo que se constituía na instância decisiva da mesma reforma”. Eles orientaram os espanhóis a reformas as leis de um regime que a maioria já dava por enterrado.

 

Naquele Referendo e eleições de 15 de abril de 1977, o governo de Suárez se encarregou de pactuar tudo, legalizou alguns partidos, como Esquerda Republicana de Manuel Azaña. A razão foi sua oposição a forma do Estado. E a direita franquista, por que não teve nenhuma restrição para acudir as eleições? O PCE foi legalizado depois de abrir mão da reivindicação da República, e o PSOE não teve problemas em alcançar sua legalização. Finalmente aconteceram eleições com a participação de 78% e uma abstenção de 21,2%.

 

O povo tomou as eleições como elas foram apresentadas, como constituintes, mas não foram convocadas por um governo provisório para reunir uma assembleia que determinará a soberania do povo. Assim que, depois desse processo de elaboração do Parlamento do seu jeito, depois de deixar de fora certos partidos por serem contrários a uma forma de Estado todavia não instaurada, as duas grandes questões que se debateram foram: a forma do Estado (voltar ou não à República destruída pelo franquismo) e a Lei da Anistia.

 

Com esta lei os responsáveis dos crimes franquistas não podem ser julgados até o dia de hoje, não existe uma comissão de Direitos Humanos no Congresso e se mantem o Registro de Filiações na sede do Ministério de Interior, como se as pessoas que decidem se filiar fossem suspeitas. Como seria este um processo constituinte, se o povo não pôde decidir como castigar os crimes franquistas, nem decidir a forma do Estado? Como será o processo constituinte se o ministro franquista Rodolfo Martín Villa censurou e ilegalizou as liberdades públicas e a pluralidade de ideias, que são a base da democracia?

 

Assim foi conformado o regime de ’78, baseado em pactos e a institucionalização do silêncio (com a Lei da Anistia), e sem poder reclamar. Isso continuou com o brutal ajuste econômico dos Pactos da Moncloa nesse mesmo ano e com a aprovação da nova Constituição no ano seguinte.

 

 

O rol da classe trabalhadora e os movimentos sociais

Somos frequentemente apresentados a transição como um êxito que implantou a democracia na Espanha como resultado do compromisso democrático de todos os partidos, especialmente dos de “esquerda” com Carrillo e Felipe González na cabeça. Esta é a versão feita perfeitamente aos interesses da classe dominante, e da esquerda institucional. É indispensável conhecer qual foi o papel da classe trabalhadora durante a transição espanhola, pois são lições para o presente, que permitem ver a fortaleza e as possibilidades de um movimento trabalhador unido.

 

Foi a partir dos anos ’60 quando a mobilização acabou. Porque foi a partir deste ano que a classe trabalhadora foi se industrializando, diante da chegada de trabalhadores rurais aos setores produtivos. Junto com este avanço de geração e mobilização, tem que se destacar outro avanço de organização, o nascimento do CC.OO., que ajudou na organização de trabalhadores na clandestinidade.

 

Dessa maneira, foi se recuperando pouco a pouco o espirito de luta. Começou com a greve dos mineiros em Astúrias, que obrigou o ministro franquista Solís Ruiz a negociais com os mineiros. Uma das debilidades do regime era que carecia de mecanismos de negociação democráticas, o que facilitava a expansão e solidariedade nas conquistas da classe trabalhadora, o povo e as mulheres. A esse período chamado de “greve de silêncio” aconteceram episódios como a conquista da proibição da demissões gratuitas, ou aumentos salariais impensáveis, tudo isso com a classe trabalhadora à frente, encabeçando sempre essa luta contra a ditadura, com valentia e determinação.

 

Nessa época fazer greves se supunha uma repressão tremenda e ademais estaria condenado à cadeia, por tanto, era como colocar a vida em perigo. Ainda assim, veremos que a greve geral foi o instrumento para conseguir as reivindicações, ao que o regime respondia com repressão.

O fato de estarem dispostos a passar por esse risco era fruto da valentia e força que tinha a luta dos trabalhadores, na qual tinha alicerce nesse sentimento de organização e militância perdurável no tempo, que planejava e preparava as mobilizações até o mais mínimo detalhe. E tudo isso, através da ideia central de lutar pelo socialismo e a necessidade das liberdades públicas.

 

Vale destacar a greve que foi realizada por mais de 800 trabalhadores em Vizcaya, pela diminuição salarial e a imposição por parte da empresa dos ritmos de trabalho, apesar de que se perdeu um marco, o Estado teve que utilizar o estado de exceção para dar um freio. Eram sempre respostas aos ataques capitalistas, que os trabalhadores mais avançados entendiam que para derrotar o regime franquista também tinham que chegar até suas raízes. Por isso, em 1976 tiveram o dobro de elementos para depois da greve geral vitoriosa, baseados em assembleias de empresas, comissões eleitas para negociar, utilização de canais legais. A necessidade de atacar o problema de na raiz com o assassinato de cinco advogados do CC.OO. pelas mãos de um grupo de fascistas, ainda que chocava com os interesses do PCE que queria pactuar com a burguesia e manter as massas sob controle.

 

Os acordos da Moncloa

As conquistas dessas lutas foram grandes para os Pactos da Moncloa em 1977, fizeram que fosse se perdendo o poder aquisitivo, e que os grandes partidos políticos de esquerda, o nacionalismo, o governo, CGT e CC.OO., “venderam o sacrifício de todos os trabalhadores por uma falsa democracia.”

 

A luta foi contínua e obrigou a ceder ao governo, então, por que os grandes partidos de esquerda e sindicatos apoiaram os Pactos da Moncloa, se isso supunha uma perda de poder aquisitivo em todos os direitos já conquistados? Em que momento os dirigentes do PCE acreditaram que as formas de democracia dos trabalhadores deveria ser neutralizadas e subordinadas ao pacto político com as elites do franquismo? A princípio o objetivo era a greve geral, mas estes pactos fizeram acontecer a partir de assembleias de trabalhadores, a acordos que institucionalizaram a negociação entre as cúpulas.

 

Por que estes pactos supunham uma perda de poder aquisitivo, e portanto um revés em tudo o que foi ganhado? Os dados estatísticos indicam que a inflação subiu para 24,6%, o desemprego passou de 5% para 15-20% nos anos ’80, foi imposto um limite do aumento salarial, o modelo de subcontratação ganhou força, a precariedade e a temporalidade do trabalho. A CC.OO. e a UGT tiveram 10% da representação a nível nacional e 15% a nível das regiões autônomas. Tudo isso, em troca de entrar para as instituições estatais.

 

Em definitivo, os principais partidos nacionalistas terminaram entrando neste grande acordo, renunciando do direito de autodeterminação e aceitando em troca de uma autonomia limitada. Foi o caso do ERC e os partidos agrupados na Convergência e União a partir da aprovação do Estatuto de autonomia da Catalunha, em 1979. Este regime de ’78, de alternância do PSOE e do PP (Partido Popular, o herdeiro mais recente da velha direita, hoje em disputa com o Ciudadanos e Vox), com o apoio dos partidos nacionalistas tradicionais, lhe garantiu durante décadas à burguesia espanhola e europeia a “estabilidade” que requer para exprimir seus lucros dos trabalhadores.

 

 

O rol das mulheres

Durante a transição 21 deputadas e 6 senadoras (num total de 700 parlamentares entre as duas câmaras) foram parte de uma dura mudança política e defenderam os direitos das mulheres. A partir de maio de 1975 as mulheres começaram a ter mais de independência e a luta feminista começou a ser vista.

 

Estas mulheres foram parte das conquistas básicas como o desaparecimento da figura do marido a cabeça da família ao menos na teoria e no Código civil, poderíamos destacar neste sentido a María Telo. Como advogada, exerceu bastante pressão em relação com os direitos da mulher e lutou pela modificação e conquista de certos direitos, por exemplo, poder abrir uma conta bancaria, aceitar uma herança, comparecer a julgamentos e contratar por ela mesma, sem necessidade da permissão do marido.

 

A luta feminina também foi sentida na conquista de leis como legalização de métodos anticonceptivos e a pensão de aposentadoria aos professores republicanos perseguidos por Franco. Foi um grupo de 27 mulheres que a partir da vida pública contribuíram para uma mudança política, e graças a elas se instaurou o art. 14 que estabelece que “Os espanhóis são iguais perante a lei sem que possa prevalecer discriminação alguma…”claro que hoje em dia a luta avançou muito, mas naquela época foi uma conquista importante.

 

Nos deixam uma mensagem importante e é que “na política, não vale tudo, senão que há uns valores para conquistar e transmitir”, e outra coisa a destacar é que muitas dessas mulheres compartilhavam a frase “não vamos dizer obrigada por nada”.

 

É interessante resgatar uma frase de Robespierre: Um povo cujos governantes não devam prestar conta de sua gestão a ninguém, não tem Constituição. Um povo cujos governantes apenas prestam contas a outros governantes intocáveis, não tem Constituição, já que depende destes traí-lo com impunidade e deixar que seja traído por outros…”.

 

O governo espanhol apenas presta conta aos grandes capitais, por isso é necessário um processo constituinte e de assembleia, para construir um novo marco político a serviço das maiorias e que as políticas feministas sejam totalmente transversais.

 

Neste sentido as mulheres, também devemos ser parte de uma mudança política, dar uma resposta ao ataque capitalista e patriarcal que sofremos, e deixar para trás tanto o regime instaurado na transição como toda a classe política que apoiou essa Constituição deslegitimada. Isso implica decidir uma nova forma de Estado e de regime, sem a monarquia que sustenta o patriarcado, a heteronormatividade e ao modelo capitalista.

 

A diferença de outros regimes ditatoriais, o regime franquista não foi derrotado pela mobilização popular, apesar da força que teve a classe trabalhadora, com seus esforços pela unidade e a organização, algo que os livros de história deixam em segundo plano. Desta forma, o poder burguês e seus representantes contaram com margem de manobra para fazer prevalecer seus interesses. As direções políticas e sindicais cumpriram um rol de primeira ordem para evitar uma quebra definitiva e categórica com o passado. Em definitivo, colocaram um “grão de areia” para que os preceitos antidemocráticos do franquismo passassem com uma nova roupagem, apenas camuflados, para as instituições da democracia formal capitalista. O ar fresco que entrou pela janela com a morte do ditador tornou-se rarefeito e viciou com a transição que de modelada não teve nada. Nesse processo, seguiram atuando os mesmos protagonistas do medo de tantos anos, para garantir a continuidade dos aspectos centrais do franquismo.

 

Nesse período aconteceram mais de 200 assassinatos políticos, a maioria claramente reconhecidos, outros apenas dissimulados para desviar a atenção. Por este motivo, tomamos dois desses casos que foram vítimas xs companheires Yolanda González e Gustau Muñoz.

 

Nos expandimos no passado porque se não fizéssemos seria impossível de entender os problemas do presente, com novos formatos, mas com o mesmo conteúdo. É possível não sentir dor e tristeza pela guerra civil e a ditadura. Mas, “virar a página” não resolve os problemas, os aprofunda; permite que sigam acumulando contradições e injustiças que em algum momento vão reaparecer por outras vias.

 

Existe outro caminho

O regime monárquico-franquista há anos está em crise e deixa visível seu esgotamento, sua falta de salvação de limitação para dar respostas democráticas e sociais para as grandes maiorias. Desde a queda da ditadura se votou regularmente, mas sob mecanismos consagrados para favorecer que o governo bipartidário PP-PSOE, o conjunto que consolidou a corrupção. A democracia está presa dentro do regime de ’78 e nem o PSOE, PP, Ciudadanos e Vox querem libertá-la com mudanças a fundo na Constituição, e quando fazem propostas, são parciais ou diretamente reacionárias.

 

Por baixo crescem as mostras de mal-estar pela situação social, política e o retirada de liberdades democráticas. As manifestações de 15-M e os Indignados foram um exemplo claro do cansaço de amplos setores da sociedade, também as do movimento feminista, os pensionistas, os catalãs e outras.

 

Para sair do enredo social, político e de nacionalidades precisam de mudanças sociais e democráticas a fundo, sem meias palavras. As eleições devem consagrar uma representação proporcional com eleição presidencial direta. Um governo sob controle social, sem privilégios, com funcionários que recebam um salario equivalente ao de um trabalhador qualificado e a obrigação de utilizar os serviços públicos de saúde, educação, transporte, etc., como faz a população. Com severas punições aos corruptos.

 

Quando existe um descontentamento popular com os funcionários a resposta é “esperem que termine o mandato e votem diferente”. É inadmissível, é necessário que os cargos sejam revogáveis e que se adquiram mecanismos participativos de democracia direta como a Consulta Popular, os Referendos vinculantes e outros que permitam que o povo trabalhador decida seu próprio destino.

 

Franco foi sepultado no Valle de los Caídos, no mesmo espaço de suas vítimas. Muitos dos símbolos fascistas e as honras que tinha se auto concedido permanecem tal qual foram feitos. Estamos de acordo em retirar os restos mortais do ditador do atual monumento ao fascismo em que se encontram, mas não para “virar a página”, os crimes impunes do Estado e de lesa humanidade não prescrevem, devem ser esclarecidos, julgados e condenados. Que se abram e se reconstruam os arquivos secretos, se esclareçam os roubos de bens e pessoas para ressarcir as vítimas ou seus familiares. Que sejam retirados dos espaços públicos todos os símbolos fascistas.

 

A restauração monárquica não é simbólica, como dizem alguns para desviar a atenção da existência de semelhante anacronismo. O Rei, seja Juan Carlos I ou Felipe VI, tem uma presença ativa tanto nos assuntos externos como internos: venta de armas ao regime assassino da Arábia Saudita, aval para a repressão do 1-O, etc. A família real goza de riqueza e privilégios manchados por escândalos de todo tipo, enquanto a população sofre necessidades básicas. Na Espanha Republicana a monarquia era uma instituição sepultada no lixo da história, o franquismo a reviveu e a transição a reciclou para que perdurasse no tempo. Há que abolir a monarquia, que Felipe VI e a família real saiam para trabalhar, sejam retirados de seus privilégios, bens suntuosos e possam estar diante da justiça como qualquer pessoa.

 

Na passagem para a democracia, o franquismo conservou juízes viciados e consolidou uma justiça dependente do poder político do momento, parcial e vingativa a serviço dos grandes interesses econômicos. O poder elege os juízes e a ele respondem. O Juiz Pablo Llarena é um exemplo brutal disso. Seguindo as linhas de M. Rajoy e do PP, não duvidou em inventar acusações falsas de rebelião e motim contra dirigentes, ativistas, vizinhos e personalidades da arte e da cultura, apenas pelo fato de pensar diferente e defender democraticamente seus ideais pela autodeterminação da Catalunha. Fiel aos pactos acima, Pedro Sánchez acordou com o PP em colocar no Conselho Geral do Poder Judiciário o reacionário Manuel Marchena, medida que logo fracassou pelo repudio que causou.

 

Diante de uma (in)justiça pleiteamos: liberdade aos presos políticos e exilados, com a anulação das causas inventadas. Plena liberdade de ideias e expressão, abaixo a Lei da Mordaça. Para garantir soberania popular na matéria de justiça, é preciso estipular que a eleição e remoção de juízes, assim como também a fiscalização dos processos judiciais estejam submetidos ao controle social, implantar a eleição direta de juízes pelo voto popular, garantir mecanismos de revogação e controle social regular dos juízes e finalmente, revisar e implementar realmente os julgamentos por jurado, e ademais que exista uma formação com perspectiva de gênero para magistrados, juízes e fiscais. São medidas para implantar uma real democratização judicial.

 

A Igreja Católica, fiel defensora da ditadura, conserva seu poder político e econômico como se nada tivesse acontecido. Influindo nas decisões do Estado que vulneram direitos democráticos das mulheres, os jovens, as minorias sexuais e raciais. Seguem recebem dinheiro do Estado que poderia se destinar a fins sociais, contêm riqueza, privilégios e estão salpicados por graves escândalos. Diante disso, propomos: liberdade de culto, nem um euro do Estado destinado para a Igreja Católica, quem quiser um padre que pague do próprio bolso, não à educação religiosa nas escolas públicas, desconhecimento da ingerência do catolicismo na vida sexual das pessoas e o direito de decidir sobre seu próprio corpo, aborto legal, gratuito e garantido, separação total da Igreja e do Estado.

 

O franquismo também levou em prática um “genocídio cultural” com a abolição de distintos idiomas das escolas e do uso cotidiano, tanto privado como público, com o objetivo de impor o uso do castelhano e homogeneizar a sociedade sob preceitos fascistas. Distintos povos da península viram como álibi a liberdade de expressão e a identidade nacional e cultural. Na Catalunha em particular, há uma ofensiva permanente contra a inversão linguística, a cultura e o reconhecimento da nação catalã como uma expressão histórica e genuína a ser respeitada como tal. Somos pelo reconhecimento do direito à autodeterminação dos povos e que decidam livremente com quais outros povos desejam conviver e sob quais normas, se querem ou não ser parte do Estado espanhol e a União Europeia, que é um bloco imperialista a serviço dos poderosos e não dos povos. É o único caminho para um relacionamento sem opressões nem contração social.

 

A burguesia e a grande burguesia seguem sendo os grandes favorecidos, igualmente como aconteceu com o poder de fato. A 10 anos da crise de 2008 se pode fazer um balanço claro: ainda não acabou, pode voltar a qualquer momento e desfigurou o panorama social. Os banqueiros, os empresários e os ricos foram salvos da quebra uma e outra vez, seus lucros foram mais que garantidos pelo PP-PSOE, que nos endividaram por anos com os usuários internacionais e nos submeteram aos desmandos de Bruxelas. É preciso dar um fim desta situação: nacionalização da banca, o comércio exterior e as principais fontes da economia, não ao pagamentos usuários da dívida, nem as imposições de Bruxelas aos desígnios do IBEX35.

 

A outra cara é provida por uma população que se empobrece em meio de uma crescente desigualdade social, preços que aumentam, salários que não alcançam, um acesso à casa própria quase impossível e aluguei abusivos. Dinheiro para saúde, educação, moradia, gênero e ajuda social aos mais pobres, aos imigrantes necessitados e aos socialmente vulneráveis.

 

Há uma perda de conquistas históricas da classe trabalhadora sem precedentes, submersas na precariedade trabalhista, cujos atores mais prejudicados são as mulheres, os jovens e os imigrantes, com miseráveis trocados para xs pensionistas que trabalharam a vida toda e com números de desempregos mais que volumosos. Isso é feito com a cumplicidade pela ação ou omissão dos dirigentes das centrais sindicais CGT-CC.OO., acomodados com o poder e as patronais, que se distanciam cada vez mais da classe trabalhadora e suas ferramentas tradicionais de luta como a mobilização e a greve geral.

 

Pleiteamos: anulação das leis da reforma trabalhista, aumento de salario e pensões para cobrir todas as necessidades, pleno reconhecimento aos direitos trabalhistas e de gênero das mulheres, igualdade salarial e de possibilidades de ascensão à cargos de direção, plano nacional de moradias populares com quotas sociais, para resolver a necessidade do teto próprio, reativar a economia e eliminar o desemprego. Que a crise seja paga pelos capitalistas que a causaram e não o povo trabalhador.

 

Em maior ou menor grau, com mais ou menos profundidade, os trabalhadores e o povo sentem, sofrem, trocam opiniões ou polemizam sobre estes problemas a partir de distintas visões. O que não pode é se negar que existam necessidades sociais, políticas, democráticas e culturais insatisfeitas nestes 40 anos que passaram. Se fala delas nas ruas, nos ambientes de trabalho, com o vizinho, os amigos ou os familiares, quando não se expressam em mobilizações massivas como o caso do movimento feminista, os pensionistas e o povo catalão.

 

Existem partidos como o PODEMOS que vão e vem em seus próprios questionamentos ao regime, inclusive se pronunciaram pela dissolução da monarquia. Porém, não vão a fundo na questão e terminam chafurdados no regime burguês e no sistema capitalista. Mais que nunca é necessário promover e facilitar a possibilidade da população debater e decidir sobre todos estes temas, esse caminho passa pela mobilização unitária para impor uma Assembleia Constituinte Livre e Soberana, com ampla participação popular. Que tenha em suas mãos a possibilidade de opinar e definir seus próprios destinos, sobre os desastres da exploração capitalista e traduzir as definições majoritárias em uma nova Constituição. Neste caminho, seguiremos lutando por uma saída estratégica: por um governo dos trabalhadores e do povo, pelo socialismo com democracia dos trabalhadores e uma Federação Livre de Repúblicas Socialistas Ibéricas.

 

A 40 anos do nascimento da Constituição, do regime de ’78 e da transição, não há nada o que festejar e muito pelo qual lutar já que existem muitas dúvidas com os trabalhadores, os povos, os jovens, as mulheres, os pensionistas e todes les oprimides e explorades. Todas e todos os espanhóis, deveríamos nos questionar muitas coisas sobre a transição, e a cada 6 de dezembro, sair em memória de todas e todos os companheiros mortos e assassinados pelas mãos do franquismo, ao invés de limpar a história de muitas figuras do franquismo, no lugar de falar de um processo democrático, falar de todos e todas as companheiras que se sacrificaram e lutaram contra a ditadura, que sofreram e lutaram para implementar liberdades. É preciso um debate profundo e honesto sobre o passado, sendo necessário romper com as políticas de consenso da burguesia.

Laura Jaén – Manel Lecha