Chile: A Frente Ampla e a esquerda chilena diante da Venezuela
A crise que atravessa a Venezuela tem marcado a agenda política a nível mundial, uma situação tensa que soma um salto na confrontação com a autoproclamação de Juan Guaidó apoiado pelos Estados Unidos, a União Europeia e os governos da região. Polarização que expressa a debacle do regime de Maduro, que entrincheirado junto com a casta burocrática do PSUV e de militares agarrados ao poder, recebem o apoio da Rússia e da China no afã de mover as peças a favor dos seus interesses na disputa do território caribenho. O objetivo de Trump não é outro senão recuperar a hegemonia em disputa sobre o petróleo e os recursos naturais, que hoje, produto das políticas de Maduro, estão abertos ao saqueio através do extrativismo consumado com o Arco Mineiro de Orinoco e abrindo mão da soberania com as bênçãos de transnacionais para Zonas Econômicas Especiais. A ingerência disfarçada com a ladainha “democrática” através de um peão como Guaidó, o “presidente interino” sem ter sido eleito, representa as ferramentas históricas das quais se vale o imperialismo quando pretende atrair a América Latina para sua armadilha. O rechaço a qualquer forma de intervenção deve ser claro, nenhuma política intervencionista irá solucionar o colapso econômico e social com o qual sofre o povo venezuelano.
No Chile, como é de se esperar, Piñera atua à sombra do Grupo de Lima, declarando rapidamente seu apoio a Guaidó, se colocando em uma posição política na qual se encontra com a totalidade da direita no país, e com setores da antiga Nova Maioria (Coalização de centro que dava apoio ao governo de Michelle Bachelet), como o PPD, a Democracia Cristã e personagens do Partido Socialista (PS). Não era de esperar outra posição daqueles que têm sido o sustentáculo da democracia herdada da ditadura, sob o amparo e a submissão ao imperialismo. A Frente Ampla (coalizão da “nova esquerda” chilena) por sua vez, vem jogando em dois lados, Beatriz Sanches e o partido Revolução Democrática (RD), junto com dirigentes do Movimento Autonomista e o novo partido Comunes (fusão da Esquerda Autônoma e do Poder Cidadão) se descolam de maduro sem se situarem concretamente de maneira independente da ingerência dos EUA, enquanto que outros setores se voltam acriticamente para Maduro. A consequência é uma sutil declaração assinada pela FA, que foi rechaçada pelo Partido Liberal, e a dissolução do Grupo de Política Internacional da Frente Ampla
A “nova esquerda” segue os passos da velha esquerda, mistura de retóricas “anti-imperialistas” e insuficiência política que definem os limites desta coalização em um cenário mundial que expõe “preto no branco” a agudização das suas contradições.
A Frente Ampla no caminho da velha esquerda.
Por trás do discurso militarista e do acordo de posições que tenta isolar Maduro a nível internacional e apostar na pressão econômica impulsionada pela política de Trump, se situa como pano de fundo o desastre social promovido pelo governo bolivariano, transformado em argumento para a ingerência. É assim que parte da base chavista rompe com Maduro, como ficou demostrado no dia 23 de janeiro – e mesmo dias antes – quando do auge de manifestações massivas e inclusive protestos nos bairros pobres de Caracas. Assim expressa a declaração de nossos companheiros da Marea Socialista da Venezuela: “insistimos na avaliação de que o fato de setores do povo estarem acompanhando a esta direita deslegitimada e rechaçada por setores importantes de suas próprias bases, é o resultado do cansaço dos efeitos desumanos da crise econômica que tem como principal responsável o governo de Maduro, seu falso socialismo e anti-imperialismo retórico. ”
A dissociação entre a casta burocrática e o povo venezuelano, foi configurando uma nova burguesia parasitária do Estado que dinamitou cada conquista gestada pelo processo bolivariano. O desfalque financeiro, o rebaixamento às ruinas do aparato produtivo, os 12% do território nacional que correspondem ao Arco Minero do Orinoco para o saqueio transnacional, a eliminação de direitos dos povos originários, privatizações e o ataque aos direitos trabalhistas como a negociação coletiva, enquanto que se assume o pagamento ao pé da letra da dívida externa. Pedra angular da condução ao estado de fome, o saqueio e a crise migratória como reflexo social da contrarrevolução econômica que promovida pelo governo Maduro com suas medidas neoliberais e na repartição da soberania nacional. De anti-imperialismo nada. A situação social é resultado da política consciente da burocracia, que hoje se apoia com a “rapina” chinesa e russa, enquanto impera com o autoritarismo próprio da militarização da política.
Estar contra a ingerência imperialista não pode significar um apoio ao regime de Maduro, pois a polarização são duas caras da disputa pelo saqueio e controle do Estado venezuelano, condicionada por uma escalada de confrontação que inclusive nega o choque militar. Contrária à independência política em relação ao Grupo de Lima, a OEA e outros atores intervencionistas, a ex-candidata presidencial da Frente Ampla, Beatriz Sánchez a través do twitter declarou: “ a partir da esquerda, da qual me sinto parte, creio que Maduro hoje é um problema para a democracia na Venezuela… O caminho é o diálogo e eleições para que sejam @s venezuelan@s quem decidam em um processo com garantias”. Reduzir uma posição política a uma publicação de poucos caracteres exemplifica o caminho que segue a figura da FA, deixando de esclarecer como seriam essas garantias em meio ao assédio ianque (omissão de intervencionismo) e de um governo de Maduro que tem limitado a participação democrática, contexto reduzido em um tweet para um problema agudo. Nesta linha, o partido Revolução Democrática através do deputado Pablo Vidal, disse em uma entrevista que o “Chile tem o exemplo vivo de como se pode sair de uma ditadura de maneira pacífica”, reivindicando um processo que se gestou sob os auspícios do imperialismo, da grande burguesia e dos militares, em função da impunidade e da continuidade do modelo.
A resposta a Beatriz Sanchez não se fez esperar no interior da FA. Cristian Cueva, através de uma carta abre o debate. O dirigente da Nova Democracia e parte da Convergência, faz uma comparação, na introdução de seu texto, com o Chile de 1973, e posteriormente afirma: “Antes de continuar, devo esclarecer que seria um reducionismo irresponsável sugerir que a situação de hoje na Venezuela é análoga à pela qual passou o Chile em 1973. As diferenças são múltiplas e profundas. Uma as mais importantes é que a Revolução Bolivariana tem suportado vinte anos de pressão implacável por parte da oligarquia interna e do imperialismo externo, incluindo o fato de ter enfrentado de forma vitoriosa o Golpe de Estado de 2002 contra o presidente Chávez”. Ou seja, para além de seu esclarecimento temporal, ele situa Maduro em um contexto similar ai da Unidade Popular (UP), e inclusive superior em virtude da sua permanência no poder, suportando a “implacável” oligarquia interna e externa.
Existem três questões que precisamos assinalar. A primeira responde a um fato real, as travas econômicas enfrentadas pela Venezuela se fizerem efetivas há pouco, durante o mandato de Trump, e inclusive não dizem respeito ao âmbito produtivo e comercial. Pelo contrário, têm se mantido – hoje posto à prova – o comercio do petróleo e de minérios de capitais transnacionais, importando sem problemas até os EUA. A segunda questão é sobre o embate com a oligarquia interna, a qual foi derrotada pelo movimento de massas durante a tentativa de golpe em 2002, com uma resposta contundente nas ruas, com a ocupação de fábricas e a retomada efetiva do funcionamento dos pilares produtivos diante à paralisação patronal. Foi isso que impulsionou o desenvolvimento progressivo da Revolução Bolivariana que hoje Maduro dinamita. A diferença central entre a Venezuela de 2002 e – inclusive – o Chile de 1973 é que na atualidade Maduro perdeu a base social chavista pelo acúmulo de contrarreformas, fator decisivo para a presença de setores empobrecidos nas ruas no dia 23 de janeiro. A terceira questão é sobre a noção de sociedade. Cristian Cuevas sugere que “O caminho escolhido pelo povo venezuelano na construção do socialismo por via democrática, com suas inegáveis singularidades, virtudes e defeitos, se encontra diante das mesmas ameaças externas e internas que outros povos também enfrentaram ao confrontar interesses dos poderes hegemônicos e deverá encontrar o seu próprio caminho de sobrevivência. ” Seguindo Cuevas, de um lado temos o socialismo de Maduro e de outro o imperialismo, portanto o regime não possui nenhuma responsabilidade pelos problemas da atualidade, estes seriam apenas produto de um processo objetivo de condições internas e externas que vão abrindo o caminho ao “socialismo”.
Embora a diferença central existente entre o processo chileno dos anos 1970 e a Venezuela contemporânea, seja que Allende não confiou no poder construído pelos trabalhadores em instancias democráticas como os Cordões Industriais, e pelo contrário, a UP optou por buscar amparo na política institucional que resultou na construção do golpe genocida, inclusive tendo mais de uma advertência da iminência do golpe.
Enquanto que Maduro não apenas não confia no poder do movimento de massas, senão que também perdeu sua base social, ao imitar o avanço do processo bolivariano e fazê-lo retroceder até se tornar parte das dinâmicas do grande capital em benefício de uma nova classe social parasitária, militar e da cúpula do governo.
Se o setor representado pelas palavras de Beatriz Sanchez dentro da FA representam a farsa, a posição defendida por setores como Cristian Cuevas, Nova Democracia, Partido Igualdade e a Revista de Frente, são a tragédia, confundindo a uma vanguarda que se apresenta forte na resistência anti-Trump contra o imperialismo, optando por defender um projeto que nada tem de Socialista, traçando um panorama entre “campos progressivos” na geopolítica, onde a “rapina” ocidental é apaziguada pela oriental (China, Rússia, etc.). De anti-imperialista fica apenas a retórica.
Karina Olivia do recém-criado Partido Comunes (ex-presidenta do Poder Cidadão) afirmou que quem defende Maduro no interior da FA é uma minoria, se referindo à representatividade parlamentar. O curioso da sua afirmação é que se dá menos um mês após terem organizado uma conversa com Juan Carlos Monedero, que foi integrante do Governo Bolivariano, fiel defensor dos autodenominados progressismos latino-americanos até o dia de hoje. Monedero chegou a sugerir que os que acreditam que Lula está preso por corrupção são “imbecis”. As cambalhotas nas posições do Poder-Comunes pareceram condicionadas pelos cálculos eleitorais. Cláudia Mix, deputada pelo Poder-Comunes foi parte da comitiva que viajou e apoiou as últimas eleições na Venezuela, para além de existirem laços estreitos com o kirchinerismo, que do outro lado da cordilheira tem mantido uma política similar. Cristina Kirchner se mantém em silêncio.
As divergências políticas sobre a situação na Venezuela no interior da Frente Ampla parecem suportáveis em um espaço que transita com o nome de “nova esquerda” pelo caminho da velha esquerda fracassada no poder.
Em um momento de definições, a necessidade da esquerda anticapitalista.
Propomos este debate com a Frente Ampla e também com a esquerda que se reivindica anticapitalista. O fazemos de forma fraternal em um momento em que as definições políticas têm um compromisso maior por conta da escalada nas confrontações em que vive a Venezuela. O reflexo da Frente Ampla com sua política internacional é a expressão que tem construído com seus deputados no parlamento. Passividade diante dos conflitos e submissão aos ditames institucionais. É difícil ser anti-imperialista quando se vota a favor dos TLC (Tratados de Livre Comércio). A confusão prevista com posturas relativizadas mediante tweet ou dogmatismo acrítico ao Madurismo falando de “socialismo”, abrem espaço para que a direita e a extrema-direita se posicionem. A FA fica entrincheirada na indefinição, onde reina a confluência para a unidade eleitoral como função estratégica.
Nossa corrente irmã na Venezuela, Marea Socialista, contraria todo o ceticismo e funcionalidade sectária. Participaram, desde o princípio da Revolução Bolivariana, demarcando sua independência política da direção do PSUV. Atuaram no seio do processo sem serem meros observadores, intervindo com uma política revolucionária, tendo rompido com o PSUV em 2016, devido ao sentido burocrático e contrarrevolucionário que começou a imperar no interior do partido e que expressa a sua debacle social. Hoje seguindo a linha de intervenção impulsionam uma saída democrática com o Referendo Consultivo, com base em eleições para todos os cargos de poder, e por sua vez, propõem um plano econômico de emergência “que recupere para os trabalhadores e o povo (Sem Trump, burocracia nem China, nem Rússia), o controle de todo o patrimônio hidrocarborífero e mineral; tome sobre essas bases, medidas básicas de emergência alimentar, que o salário mínimo alcance a Cesta Básica, que responda às sanções e à escalada imperialista com expropriações defensivas elementares em resposta ao bloqueio e ao confisco de patrimônio venezuelano promovido pelos Estados Unidos, que suspenda imediatamente o pagamento da dívida externa; que convoque a uma ampla mobilização nacional e internacional dos povos, em apoio a uma reorganização anticapitalista e verdadeiramente socialista da Venezuela.”
Em momentos de definição a mera retórica não serve, a necessidade de se construir uma alternativa independente dos ditames do imperialismo e das castas burocráticas apoiadas pelos interesses expansionistas da Rússia e da China se faz urgente. O apoio internacional ao povo venezuelano ajudará a superar o principal limite no qual de detém o processo: o desenvolvimento de uma força independente no calor da mobilização popular. Apoiar um processo constituinte democrático e independente como propõe a Marea Socialista, com os trabalhadores e o povo, será tarefa dos anticapitalistas.
É hora de definições na esquerda chilena e mundial.
Joaquim Araneda
Militante do Movimento Anticapitalista (Seção chilena da corrente Anticapitalistas em Rede).
i Marea Socialista (01 de febrero, 2019). Venezuela: ¡No a la intervención imperialista! ¡Ni el golpe de Guaidó ni la tragedia de Maduro!. www.Anticapitalistasenred.org
ii https://twitter.com/labeasanchez/status/1090737243629723649
iii Pablo Vidal (23 de Enero, 2019). www.cnnchile.cl
iv Cristian Cuevas (01 de Febrero, 2019). Carta abierta al Frente Amplio a propósito de la situación en la República Bolivariana de Venezuela. www.adnnoticias.cl
v Ídem
vi Ver video en Facebook de Radicaliza la democracia (04 de enero)
vii Mariano Rosa, Carlos Carcione (04 de Febrero, 2019) Venezuela: entre la rapiña imperialista y la burocracia parasitaria. www.anticapitalistasenred.org