Intervenção de Bolsonaro na UFRGS
Por Fernanda Rodrigues Leivas (A autora desta nota baseou o texto no manifesto que ajudou a construir em conjunto com demais alunos da PG Fis UFRGS.)
Uma série de ameaças e cortes de verbas às instituições públicas de ensino vem sendo executadas gradativamente nos últimos anos, com o maior desses cortes ocorrido em 2015. Em 2016, a “PEC do Teto de Gastos” (Emenda Constitucional nº. 95) agravou as circunstâncias e tirou qualquer perspectiva de melhora em um período de 20 anos. Mas é nos últimos anos que se vê mais explicitamente ameaças e ações por parte de um governo declaradamente contrário às instituições de ensino superior. Em meados de maio ocorreram mudanças nos critérios de seleção de bolsas do Centro Nacional de Pesquisas (CNPq) que tendem a impactar profundamente a forma de se executar pesquisa no Brasil. O texto dá exclusividade para áreas de desenvolvimento tecnológico e de inovação, desfavorecendo partes fundamentais do conhecimento humano como humanidades e lingüística.
Aliado a essa adversidade existe todo um projeto de desinformação e “fake news” visando a desqualificação da ciência, que acabam por fortalecer uma ideologia de oposição e ódio a um ensino público digno, de excelência e independente. Em tempos de coronavírus esse cenário fica mais que transparente com o descaso do presidente com as mais de 140 mil vidas brasileiras perdidas, que é resultado de uma política de negação aos conselhos de pesquisadores e da própria OMS. O descaso com a ciência é tanto que o presidente chegou a receitar publicamente um medicamento que não possui eficácia comprovada, que ao contrário, gera muitos efeitos colaterais.
O processo de consulta à comunidade acadêmica quanto à escolha do Reitor da UFRGS para o período 2020-2023, e a sucessiva escolha do presidente na consulta colocando Carlos Bulhões como reitor, deve ser analisada dentro de todo esse contexto político. Usualmente as chapas inscritas são priorizadas em ordem através de um processo de consulta da comunidade acadêmica e enviadas para o presidente da república que escolhe a chapa vencedora. Esse processo já é em si problemático e deve ser revisto, pois permite que a chapa seja nomeada não porque os integrantes que compõem e vivem a universidade decidiram que ela possui competência para tal, mas para que o presidente da república alinhe política e ideologicamente os expoentes de pesquisa e ensino do país – resquício da ditadura militar. Reconhecendo a problemática desse processo, os presidentes habitualmente escolhem o mais votado pela consulta, respeitando a autonomia das instituições. Em uma definição não convencional, o atual presidente decidiu contrariar os últimos 32 anos (excetuando uma ocorrência), e decidiu não nomear o indicado pela instituição, mas escolher o terceiro colocado. Mesmo sendo essa chapa a que obteve menos votos em todos os segmentos da UFRRS, porém que apresenta um alinhamento ideológico aos interesses do governo. Frente à realidade exposta e as pelo menos 12 interferências desse gênero em outras instituições públicas de ensino, pontua-se este ato como uma intervenção à autonomia das universidades públicas de todo o país.
Além disso, em claro desrespeito aos pilares acadêmicos (Pesquisa, Ensino e Extensão), o então nomeado reitor dissolveu e uniu as Pró-reitorias de Pesquisa e Extensão, Assuntos Estudantis e Ações Afirmativas, Graduação e Pós-Graduação, entre outras. Reiterando-se o momento atípico vivido, de expansão negacionista e distorções propagandistas da realidade, é imprescindível a independência dos órgãos de extensão que garantam as conexões entre comunidade acadêmica e sociedade. Conjuntamente a isso, todas as conquistas humanitárias trazidas pela Pró-reitoria de Ações Afirmativas, na tentativa de retratação de dívidas colonialistas históricas, são ameaçadas quando se limita a autonomia deste órgão, principalmente em um momento tão frágil desse segmento no governo federal.
As intervenções ocorrem desde o início do mandato do atual presidente, contando com casos em que o nome indicado nem contava na lista tríplice. Esse processo foi ainda agravado na pandemia através de uma MP, que autorizava o então ministro da educação, Abraham Weintraub, a nomear reitores sem consulta prévia a comunidade acadêmica.
Em resposta a essas medidas muitos setores se mobilizaram e protestaram contra tais intervenções, em Chapecó os alunos chegaram a ocupar a universidade, na Universidade Federal de Pelotas (UFPel) os estudantes se manifestaram previamente as próprias eleições. Na UFRGS mesmo em meio à pandemia, estudantes e professores se sentiram forçados a ir às ruas para defender a autonomia de sua instituição e vem organizando uma série de protestos. Nas universidades que já passaram por esse processo os reitores indicados por Bolsonaro enfrentam resistência e dificultade de atuação.
Ainda em 2019 a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições de Ensino Superior (Andifes) emitiu uma nota afirmando que:
“Não respeitar a indicação de um primeiro lugar não é simplesmente fazer um juízo contrário à qualidade administrativa ou às posições políticas de um candidato ou candidata, mas, sim, de modo bastante grave, desqualificar a comunidade universitária e, também, desrespeitar a própria sociedade brasileira, atentando contra o princípio constitucional que preza a autonomia das universidades públicas”
A Andes também emitiu uma nota em junho de 2020:
“São inúmeros os casos de desrespeito à consulta pública junto à comunidade acadêmica, com a nomeação de segundo ou terceiros colocados da lista tríplice ou de intervenção via reitores pro tempore, que nem das consultas participaram. Estamos atravessando o mais grave ataque às Universidades, Institutos e CEFET, um ataque que remonta ao entulho autoritário da Ditadura Militar”.
O processo de nomeação do último colocado na lista tríplice é tão ilegítimo que o próprio, até então candidato à reitoria da UFRGS, afirmou em debate que desejava respeitar o resultado da consulta interna à universidade, após a nomeação, quando questionado sobre tal afirmação disse que “se equivocou”. Considerando ser difícil ocorrer um mal-entendido sobre uma posição tão simples e clara, conclui-se que essa mudança de posicionamento é conveniente e por consequência antiético. Além disso ele afirma que “vem sendo discriminado ao longo de sua trajetória” e que “gerou-se um sentimento de preconceito”. A resistência a um processo extraordinário como esse é mais que esperada, encarar essa resistência ao processo como perseguição pessoal apenas sintetiza a incapacidade de exercer uma política coerente e idônea.
O processo de intervenção enfrentado pela UFRGS, e por diversas universidades federias do Brasil, visa atacar os centros de pesquisa que combatem a desinformação, e também tenta desvincular a universidade da população tornando-a ainda mais elitista. Sob a ótica de um governo sustentado por mentiras, que já manifestou sua opinião diversas vezes contra povos originários, negros, mulheres e LGBTs, fica claro que essas ações fazem mais uma vez parte de um processo que favorece uma minoria composta por homens héteros brancos, que desejam que essas instituições federais, até então autônomas, sirvam aos seus próprios interesses de classe.
Referências:
[1]-https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2019/05/15/interna_politica,1054070/governos-de-dilma-e-temer-tambem-cortaram-verbas-da-educacao.shtml
[2]-https://g1.globo.com/to/tocantins/noticia/2019/12/12/em-evento-no-tocantins-jair-bolsonaro-diz-que-aluno-de-universidades-brasileiras-faz-tudo-menos-estudar.ghtml
[3]-https://educacao.estadao.com.br/noticias/geral,mec-cortara-verba-de-universidade-por-balburdia-e-ja-mira-unb-uff-e-ufba,70002809579
[4]-https://jornal.usp.br/universidade/mudancas-no-cnpq-e-capes-preocupam-pos-graduacao-da-usp/
[5]-https://www.senado.leg.br/atividade/const/con1988/con1988_02.07.2020/art_207_.asp
[6]-https://www.senado.leg.br/atividade/const/con1988/con1988_02.07.2020/art_84_.asp
[7]-https://www.senado.leg.br/atividade/const/con1988/con1988_02.07.2020/art_5_.asp
[8]-https://gauchazh.clicrbs.com.br/educacao-e-emprego/noticia/2020/09/carlos-bulhoes-toma-posse-como-reitor-da-ufrgs-e-reorganiza-pro-reitorias-ckfcv881b004f014ky7fwje1l.html
[9]-https://www.ufmg.br/proex/renex/images/NOTA_02-20_-_rep%C3%BAdio_reestruturacao_ufrgs.pdf
[10]-https://gauchazh.clicrbs.com.br/educacao-e-emprego/noticia/2020/09/bulhoes-disse-ter-o-desejo-de-respeitar-o-resultado-da-consulta-interna-para-reitor-da-ufrgs-em-debate-virtual-em-julho-ckf5j9jx1003f014yfypqi1mw.html
[11]-https://gauchazh.clicrbs.com.br/educacao-e-emprego/noticia/2020/09/nao-temos-nenhuma-restricao-a-dialogar-com-ninguem-diz-carlos-bulhoes-ao-aceitar-nomeacao-para-reitor-da-ufrgs-ckf7986hy007a014ru9jn4nuk.html
[12]-https://gauchazh.clicrbs.com.br/educacao-e-emprego/noticia/2020/09/ranking-global-coloca-ufrgs-entre-as-oito-melhores-universidades-do-brasil-ckelh1ya8001y014yjlidmxa1.html
[13]-https://www.sul21.com.br/ultimas-noticias/geral/2020/06/ufrgs-e-a-segunda-melhor-universidade-federal-do-brasil-em-ranking-nacional/
[14]- https://www.g1.globo.com/educacao/noticia/2019/08/31/governo-interveio-em-6-de-12-nomeacoes-de-reitores-de-universidades-federais-ate-agosto.ghtml
[15]-https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2020/06/na-pandemia-bolsonaro-vai-nomear-reitores-sem-eleicao-nas-universidades.shtml
[16] https://www.opovo.com.br/noticias/fortaleza/2019/08/20/alunos–professores-e-servidores-protestam-contra-nomeacao-de-novo-reitor-da-ufc.html
[17]-https://www.nsctotal.com.br/noticias/estudantes-ocupam-salas-na-uffs-em-chapeco-em-protesto-contra-nomeacao-de-reitor
[18]-https://www.diariopopular.com.br/geral/em-defesa-da-autonomia-universitaria-154584/
[19]-https://www.metro1.com.br/noticias/politica/77919,escolhido-por-bolsonaro-reitor-da-ufrb-toma-posse-hoje
[20]-https://andesufrgs.org.br/2020/08/24/governo-bolsonaro-ja-interveio-em-pelo-menos-dez-nomeacoes-de-reitores/
[21]-https://www.redebrasilatual.com.br/educacao/2020/06/sindicato-vai-a-justica-contra-manifestacoes-do-reitor-interventor-da-uffs-no-rio-grande-do-sul/
[22]-https://guiadoestudante.abril.com.br/universidades/ufc-recebe-novo-reitor-escolhido-por-bolsonaro-com-protestos/
[23]-https://www.ufmg.br/prae/noticias/para-andifes-e-augm-reitor-nomeado-deve-ser-o-primeiro-colocado/
[24]-https://www.brasildefato.com.br/2019/08/20/ilegitimidade-marca-a-nomeacao-do-novo-reitor-da-ufc
[25]-https://www.jornaldocomercio.com/_conteudo/geral/2020/09/757203-reitoria-da-ufrgs-alunos-e-professores-protestam-contra-nomeacao-de-bulhoes.html
[26]-https://gauchazh.clicrbs.com.br/educacao-e-emprego/noticia/2020/09/no-primeiro-dia-de-bulhoes-como-reitor-da-ufrgs-estudantes-protestam-contra-intervencao-bolsonarista-ckfcmrrdx000h014kk95rwp8g.html
[27]-https://www.assufrgs.org.br/2020/09/28/estudantes-do-iph-apg-dafe-e-tecnicos-da-fagro-e-ifch-se-manifestam-contra-intervencao-na-ufrgs/
[28]-https://www.extraclasse.org.br/educacao/2020/09/estudantes-protestam-na-reitoria-da-ufrgs-contra-nomeacao-de-bulhoes/
[29]-https://www.gazetadopovo.com.br/educacao/reitores-indicados-por-bolsonaro-enfrentam-resistencia-nas-universidades/
[30]-https://www.apufsc.org.br/2020/06/18/com-reitores-interventores-uffs-e-ufc-enfrentam-desafios-duplos-durante-a-pandemia/ [31]-https://andesufrgs.org.br/2020/08/24/governo-bolsonaro-ja-interveio-em-pelo-menos-dez-nomeacoes-de-reitores/