Nova Ferroeste: o anúncio de um Novo Contestado

Ratinho Jr. reencarna as piores características dos governadores da República Velha

Por Bruno Meirinho – Alternativa Socialista/PSOL. LIS, Brasil.

A Guerra do Contestado de 1912 a 1916

Contestam os caboclos

A vida, não fronteiras,

Que assim é suprimida

De indevida maneira.

Ressurgem, porém, loucos

Fazendo, aos poucos, guerra

Aos muitos que lhes querem

De face contorcida

Por um fato: o de serem

Larápios de suas terras

(Resistência camponesa ante o “estado agrícola” de Ricardo Pazello)

A soberania e o desenvolvimento nacionais dependem de investimentos de diversos tipos, entre eles a infraestrutura. Investimentos ferroviários apresentam vantagens que vão desde custos menores de operação à redução da poluição causada pelo transporte. É, portanto, mais eficiente e ecológico.

Porém, só a perspectiva ecossocialista é capaz de produzir esse resultado, já que as iniciativas de soberania e desenvolvimento lideradas pelos modelos capitalistas produzem justamente o resultado contrário: desigualdade, colonização, violência e destruição. O caso do Contestado é um exemplo trágico de como a modernização capitalista produz resultados incongruentes.

A Guerra do Contestado entre os anos 1912 e 1916 é um episódio marcante do Paraná. A causa do conflito foi o assalto às terras caboclas e às florestas causado pelas obras do trecho paranaense e catarinense da Estrada de Ferro São Paulo Rio Grande do Sul.

O modelo de construção de ferrovias da época previa a total privatização das obras, desde a aquisição das terras até a implantação dos trilhos e a operação do trem, que foram conduzidas pela empresa estadunidense do famoso magnata Percival Farquhar.

A República Velha assegurava a barbárie: a empresa construtora da ferrovia poderia explorar toda a floresta de araucárias em extensas áreas do entorno da ferrovia como “forma de pagamento” pela obra. O empresário construtor direcionou suas atividades para lucrar com a exploração da madeira de araucária, e fundou uma grande empresa madeireira, a Southern Brazil Lumber and Colonization Company.

Ocorre que em meio à floresta existiam terras utilizadas de modo tradicional por comunidades caboclas. Sem documentos formais de propriedade, essa população era considerada “inexistente”, e suas terras “sem dono”, e as instituições da República Velha asseguravam que as áreas fossem apropriadas pela empresa estadunidense sem qualquer indenização.

Os caboclos foram expulsos de suas terras por milícias privadas da empresa estadunidense e passaram a formar pequenas vilas onde sofriam com a fome e a desesperança. Mas a liderança messiânica do monge do Contestado, José Maria, reorientou o povo e transformou a indignação em ação e resistência. Por meio de guerrilha popular, os rebeldes do Contestado passaram a atacar as obras da ferrovia.

Embora grande parte dos ataques rebeldes ocorressem em Santa Catarina, foi o Paraná quem mobilizou sua Polícia Militar para reprimir a revolta. O então Vice-governador do Paraná, Affonso Camargo, era também advogado de Percival Farquhar, revelando o escandaloso conflito de interesses.

A desigualdade de forças era notável: pelo lado do Paraná, militares com armas de fogo, devidamente treinados e equipados. A Polícia Militar registra nesse episódio um dos mais antigos usos do avião em conflitos. De outro lado, rebeldes com facões e ferramentas da atividade agrícola, e o profundo conhecimento da floresta. Os rebeldes resistiram por 4 anos, até que foram sufocados pela repressão.

A ferrovia que deu origem ao conflito hoje está praticamente inativa, mas a sua cicatriz é permanente: a destruição das florestas de araucária, seu verdadeiro motor condutor, e a expulsão da população camponesa.

A Nova Ferroeste

Ratinho Júnior, governador do Paraná, anunciou, com ares de “grande novidade”, o projeto da “Nova Ferroeste”, que ligará o Porto de Paranaguá a Guarapuava. De lá, une-se ao traçado já existente da Ferroeste até Cascavel, de onde o projeto propõe a extensão até Maracaju, no Mato Grosso do Sul.

A proposta é “vender” essa ferrovia, ainda na planta, para a empresa que oferecer o maior lance em um leilão que será realizado na Bolsa de Valores de São Paulo. Depois disso, caberá à empresa vencedora executar a obra, e, inclusive, realizar desapropriações.

Essa forma de privatização foi idealizada por Tarcísio de Freitas que, em entrevista recente, se disse inspirado ao modelo adotado no Brasil “100 anos atrás”. Seria um defensor confesso da volta da República Velha?

O modelo é o seguinte: a empresa que vencer o leilão receberá concessão por 99 anos. Nesse período, terá direito ao uso exclusivo, monopolista, de porteira fechada, do traçado ferroviário, em seu interesse exclusivamente privado!

Ao contrário do que o governo diz, não está havendo a concessão de uma ferrovia, mas a privatização de todo o território desse traçado! A suposta ferrovia é apenas o argumento de “legitimidade”, afinal, é enorme a importância de uma obra dessa natureza. A questão é que a ferrovia nem sequer sairá do papel e, antes disso, produzirá toda a destruição que é o real objetivo dos parceiros da exclusão.

Os estudos divulgados no site do governo do Estado do Paraná falam no atingimento de áreas de territórios quilombolas, indígenas, faxinais, caiçaras, cipozeiras, ilhéus e assentamentos rurais, que serão sumariamente desapropriados por decretos. As desapropriações serão feitas pela própria empresa privada, que não economizará esforço na contratação de milicianos, jagunços e capangas.

Veja-se que o novo traçado avança ainda sobre o Mato Grosso do Sul, alcançando extensão com conflitos entre latifundiários e comunidades tradicionais, chegando às portas do Pantanal! Qual é a novidade dessa proposta, governador?

Ratinho Junior apenas repete a desastrosa conduta de Affonso Camargo, com a diferença de que provavelmente não entregará a prometida ferrovia, mas apenas os conflitos, a violência e a destruição. Esse modelo não passa de uma reedição dos projetos “de desenvolvimento” da República Velha, quando pulularam por todos os cantos os genocídios da população brasileira.

O lado farsesco dessa história toda tem ainda outro contorno. Esse modelo ferroviário, que é o pior possível, nem sequer sairá do papel, porque a concessionária que vencer o leilão com absoluta certeza não realizará nenhum dos investimentos anunciados.

Podemos apostar, sem medo de errar: a empresa que vencer a concessão apenas continuará a operar o vantajoso trecho já existente entre Cascavel e Guaruapuava, e que hoje é administrado pela empresa estatal paranaense Ferroeste S.A.. O Paraná venderá o seu controle sobre esse trecho em conjunto com a Nova Ferroeste, e, desse modo, a única ferrovia estatal brasileira, eficiente e saudável, será privatizada.

A empresa vencedora do leilão será instrumento de toda espécie de destruição e depravação ao longo do trecho proposto da Nova Ferroeste, praticando danos ambientais irreparáveis, destruindo remanescentes de mata atlântica e outras vegetações, cometendo genocídio e expulsando a população da região, sob o argumento de que pretenderá construir a ferrovia.

Depois de toda a destruição, sob algum argumento econômico e com brechas no contrato, a empresa concessionária alegará algum novo problema que tornará a ferrovia inviável. Assim, devolverá os contratos ao governo e, ainda por cima, exigirá de volta todo o dinheiro que pagou no leilão realizado na Bolsa de Valores de São Paulo.

Dito de outro modo, o Paraná divulgou edital para um Novo Contestado, para a prática indiscriminada de crimes ambientais, e para que o povo do Paraná assuma uma dívida com a empresa que praticará todos esses crimes, e que ainda por cima será indenizada ao final.

Desse modo, a ansiedade brasileira por mais ferrovias é explorada indevidamente por projetos criminosos. Precisamos sim de mais ferrovias. Não é isso, contudo, que os modelos de modernização capitalista propõem.

*Descrição da imagem: Árvores cortadas do planalto catarinense viravam tábuas em serraria em Três Barras (SC)
Fotografia de Claro Jansson/Acervo Dorothy Jansson Moretti