Entrevista: O fim da aposentadoria digna no Chile é a mesma proposta de Bolsonaro para o Brasil



Compartilhamos abaixo uma entrevista realizada pelo camarada Lucas Tiné da Alternativa Socialista de Pernambuco com a companheira Maura Gálvez, militante do Movimento Anticapitalista, seção da nossa corrente internacional Anticapitalistas Em Rede no Chile.

O Chile foi um dos primeiros países a experimentar a transição do sistema de Previdência público para o privado. A reforma se deu durante a ditadura de Augusto Pinochet, na década de 1980 e trouxe consequências trágicas para os trabalhadores e o povo pobre Chileno. Em um momento em que o governo Bolsonaro lança uma ofensiva contra o direito à aposentadoria e junto com o seu ministro da Economia Paulo Guedes, formado na mesma Escola dos ministros de Pinochet, tenta aprovar a “Reforma” da Previdência no Brasil, achamos interessante compartilhar a experiência de resistência e luta do povo chileno em defesa de uma aposentadoria digna e de uma Previdência pública e solidária.


AS: Quando Pinochet apresentou a proposta de reforma da previdência, qual era sua promessa central de melhoria?

Maura: Na década de 80, em plena ditadura militar, foi dado inicio ao plano de privatização dos direitos sociais, o objetivo era desmontar os serviços públicos e fortalecer o negócio privado em uma verdadeira revolução economia que impôs o neoliberalismo com a ponta do fúsil. É nesse contexto que José Piñera, irmão do atual presidente do Chile, impulsa um modelo de pensões de capitalização individual que substituiria o antigo sistema, transformando assim o sistema para a apropriação de poupança através de administradoras privadas , com base no Decreto de Lei 2500 de Administradoras de Fundo de Pensão (AFP).

As AFP são um sistema de poupança forçada que todos os meses toma 10% do salario das e dos trabalhadores para administrá-lo e investir no mercado de especulação através de empresas de capitais transnacionalizados, nutrindo um grande negócio para os “administradores”, nas palavras do economista Gonzalo Durán, “as AFP investem o dinheiro dos trabalhadores nos bancos, por exemplo, em depósitos à prazo, cujas taxas de interesse flutuam entre 4% e 4,5% anual. Por sua vez, estes mesmos bancos, emprestam esse dinheiro aos trabalhadores por meio de créditos de consumo, com taxas anuais de 25% (…) Um negócio gordo. Os 90% das pensões que pagas pelas AFP são inferiores a 64% do salario mínimo”. De cada 3 pesos que os trabalhadores investem nos fundos de pensões, apenas 1 está destinado a pagar pensões.

A promessa central para instalar este modelo foi oferecer para as e os trabalhadores a possibilidade de administrar seus próprios fundos, segundo a propaganda da ditadura efetuaria lucros superiores ao antigo sistema, já que casa trabalhadores seria “dono” de seus fundos e atuaria como especulador. Este sistema que a partir de dezembro de 1982 passou a ser o único vigente no país, excluindo as forças repressivas das quais lhes foi garantido o fundo de distribuição, não só não cumpriu com a promessa inicial de “fazer os trabalhadores donos de seus fundos”, privando a decisão de onde iriam parar suas poupanças, senão que também pavimentou o caminho da vida dos aposentados para a miséria, constituindo uma verdadeira tragédia social que impulsiona as respostas nas mobilizações sociais que trouxeram para o debate o sistema de pensões.

AS: Qual é a atual realidade de vida dessa primeira geração de aposentadas e aposentados depois da reforma imposta por Pinochet?

Maura: A realidade hoje é critica para quem se aposenta com este sistema, 90% das pensões é inferior a $156.000 (893 reais), valor menor que o salario mínimo. Isto responde às políticas de consenso do modelo social consolidado pela ex-Nova Maioria para manter o neoliberalismo imposto por Pinochet, isso explica o porque da atual situação. Um exemplo é que durante o primeiro governo de Bachelet, foi implementada uma medida assistencial e subsidiaria, criando o Pilar Solidário (2008), uma subvenção Estatal que paga uma pensão Básica Solidária de $102.897 pesos (570 reais), que está abaixo da linha de extrema pobreza.

Este sistema prejudica transversalmente toda a classe trabalhadora, mas somos nós mulheres as mais afetadas com este modelo, onde 94% das mulheres recebe pensões que não chegam a $154.000 pesos. Contraditoriamente a esta realidade, as rentabilidades obtidas pelas AFP do mercado local, chegaram a mais de 530 milhoes de dólares de lucro no terceiro trimestre do ano. O que representa um crescimento no lucro de mais de 30%, enquanto que as rentabilidades dos fundos que os usuários tem fizeram em 4%. Além disso, isso expressa um esquema geral que se dispõe as flutuações do mercado, sendo as poupanças capitais de risco às incertezas de suas oscilações, se as AFP perdem, cobram aos trabalhadores.

Os dados são escandalosos, em 2018 apontam que 50% dos 124 mil novos pensionistas obtiveram pensões abaixo dos 48 mil pesos, segundo dados da própria Superintendência de Pensões. A realidade do empobrecimento das condições de vida dos aposentados é atual e os dados mostram que é um sistema caduco e perverso, serve apenas para o lucro privado, sem promover o mínimo de dignidade para quem trabalhou a vida toda.

AS: Existe algum órgão do Governo que regulamenta a atuação das AFP?

Maura: A consolidação do sistema de AFP baseou-se na desregulamentação Estatal, infundindo um cenário de liberdade absoluta às Administradoras de pensões que, em primeiro lugar, levou à monopolização de alguns. Nesse esquema quem deveria regulamentar é a Superintendência de Pensões, espaço que meramente tem um rol fiscalizador e nos últimos tempos tem demonstrado sua consciente ineficácia. Durante 2017 foi revelado que as AFP realizaram investimentos ilegais por mais de 120 milhões pelo menos durante uma década, este fato revelado pela Superintendência a colocou em cheque, já que a única ação que tomou foi uma multa de 0,14 do montante investido pelas AFP, ou seja, uns 180.000 de dólares, sem implementar nenhum espaço de investigação civil ou penal, uma verdadeira zombaria. Vale a pena lembrar que a Lei que regula as empresas é de 1980.

Por outro lado, existe um nexo direto entre o mundo das AFP e o político, se transformou em um costume a troca de funções entre um cargo público para um cardo nas empresas, um exemplo disso é a ex-Ministra do Trabalho e Previdência Social de Bachelet, Ximena Rincón, que foi posteriormente diretora da AFP Pró-Vida, entre outras dezenas de nomes de políticos ligados à ex-Nova Maioria e à Direita que ocupam cargos em diretórios ou consultoras ligadas ao negócio das AFP.

AS: Existe algum debate/proposta no sentido de retorno ao sistema público de previdência social?

Maura: O debate sobre o modelo de pensões surgiu através das massivas mobilizações contra as AFP, em um primeiro momento sob o governo de Bachelet se propôs a possibilidade de uma AFP Estatal, como forma de “regular competição” entre os administradores, isto é, não implicaria numa opção diferente da que já temos. Agora, Piñera propôs uma reforma do sistema previdenciário, o Governo entregou um projeto que propõe aumentar a contribuição para 10% da Pensão Básica Solidária (para quem não contribuiu) e aumentar a contribuição previdenciária solidária em 15% (para aqueles que uma pensão muito baixa).

Esta medida do Governo é fictícia e uma composição de continuidade do modelo, como afirmou o economista Marco Kremerman, “com a reforma previdenciária proposta pelo governo, devemos esperar até 2024 e chegar a 80 anos para ter uma melhora no Pensão Básica de Solidariedade superior a $ 40 mil”, isso porque somente pelo reajuste do IPC a cada ano a Pensão Básica de Solidariedade aprofundaria os $128 mil até 2024, enquanto que com a reforma de Piñera a mesma data seria $140 mil pesos para pessoas entre 65-69 anos. Além disso, a reforma prevê que a contribuição individual passará de 10% para 12,8%.

As propostas que vieram tanto do Governo de Bachelet como o de Piñera têm em comum o substancial: mantêm o modelo apesar das paupérrimas condições dos aposentados, nenhum governo teve um compromisso de voltar a um sistema solidário.

Através da Coordenadoria de Trabalhadores Não Mais AFP, foi levantada uma proposta para um Sistema Compartilhado tripartido e solidário, o que quer dizer um sistema que restitua a seguridade e proteção social como direito das e dos trabalhadores. A Coordenadoria formulou uma proposta técnica de contempla além disso um processo de transição do atual sistema para o novo. Esta ideia teve uma adesão popular importante, durante setembro de 2017 houve um plebiscito que exemplificou o rechaço social às AFP, e ainda que não tenha sido um plebiscito vinculante, constituiu uma amostra a mais do que expressam as massivas mobilizações.

A Coordenadoria Não Mais AFP, através de sua proposta técnica idealizou uma Leu, “Iniciativa Popular de Lei”, com a ideia de que pudesse ser legislada. Do nosso ponto de vista era uma boa política, ainda que lamentavelmente a direção da Coordenadoria Não Mais AFP tenha optado pelo caminho do lobby parlamentar, abandonando as ruas, desgastando um movimento que convocava centenas de milhares de pessoas a marchas aos domingos a cada mês, transformando o repúdio em um ato simbólico. É por essa política que a última manifestação em 31 de março deste ano, cuja convocatória foi em resposta à reforma de Piñera, ainda que tenha sido massiva, demonstrou que a política equivocada da Coordenadoria se fez sentir, já que ela diminuiu a sua convocatória em comparação aos anos anteriores. Nós opinamos que caso se queira realmente impor uma nova Lei, não será através do lobby parlamentar, nem muito menos não convocado à mobilização, senão que completamente ao contrário, apoiando-se no movimento social e sindical, retomando a força que demonstrou o Não Mais AFP nas ruas, como método para garantir um apoio popular à nova proposta, sobre tudo em um momento em que se reafirma a tragédia do sistema e que em todo o mundo se busca repetir, nossa resposta deve vir com a mobilização.