ENTREVISTA: A crise venezuelana também é política

Recentemente estivemos com a companheira Zuleika Matamoros, que constrói Marea Socialista na Venezuela, partido seção de nossa corrente internacional Anticapitalistas Em Rede. Aproveitamos a oportunidade para entrevistá-la com questões simples, mas que enriquecem o debate sobre a atual conjuntura venezuelana.

 

Alternativa Socialista: Para contextualizar o debate, como surgiu o fenômeno Chávez?

 

Zuleika Matamoros: Chavez é um governo que chega, ou melhor dizendo, é um homem que chega ao governo graças a um processo revolucionário que se iniciou com o Caracaço em 1989. Apenas de que o governo de Carlos Andrés Pérez, que era de coalizão democrática da 4ª República em decadência, a precariedade era tão grande que na cabeça das pessoas que participaram do Caracaço o único que passava era: “não importa o que venha depois, queremos um governo diferente”.

Em 1992 aconteceu a rebelião militar de 4 de Fevereiro, e Chávez recebeu todo apoio por essa disposição em realizar a mudança pleiteada no Caracaço e nas mobilizações que aconteceram em seguida [apenas para colocar em contexto, mas não para aprofundar no assunto].

Chavez que era um nacionalista e que chegou disputado pelo que seria uma terceira via, impulsionado pelo processo a dar um giro à esquerda.

 

AS: Quais foram as primeiras medidas do governo Chávez?

 

Zuleika: Ele começou a re-estatizar a indústria petroleira e fazer uma distribuição dos recursos obtidos através do petróleo ao que ele considerava “pagamento da dívida social”. Isso significou, independente das diferenças que possamos apontar em uma analise mais extensa, significou um avanço no momento em que acontecia, por várias circunstâncias. Porque de alguma forma a qualidade de vida do Venezuelano, dos setores mais pobres, conseguiu aumentar. Foram criadas as missões. Além de ter conseguido estabilizar a economia do país, o que fez algumas classes conseguirem aumentos salariais e até impulsionar o poder aquisitivo das pessoas.

Claro que no meio disso tudo foram tomadas decisões que não iriam a fundo com o socialismo, mas que apontavam ao retrocesso. Tiveram questões que desencadearam em uma crise que iria acontecer com Chávez vivo ou não. Como Chávez responderia a esta crise, não podemos saber porque ele morreu. Mas sabemos que Maduro, que se supõe que teria a tarefa de seguir no caminho de tentar governar para os trabalhadores e para as classes populares. O que não tem acontecido.

Por várias circunstâncias, o governo de Maduro tem representado um retrocesso importante no ponto de vista econômico, político e social. E poderíamos debater em outra oportunidade qual é a gênesis, inclusive do período chavista.

 

AS: Quais seriam as circunstâncias?

 

Zuleika: A primeira circunstancia é porque Maduro, abertamente, tem governado para que a casta burocrática do governo se consolide como nova burguesia. Isso significa que a partir do momento que tivemos a queda no preço do petróleo, no lugar de importar alimentos e medicamentos para a população ele privilegiou o pagamento dos bônus da divida que são milionárias, e que foram adquiridas em bolívares (moeda venezuelana) e paga em dólares.

Nós da Marea Socialista apontamos que é preciso auditar a dívida e que não se pode privilegiar o pagamento dela. Parar com o pagamento da dívida, porque como sabemos, o aparato produtivo na Venezuela está estagnado. A direita diz que está estagnado por causa da falta de dólares para comprar insumos. Mas é preciso esclarecer, a muito grosso modo, que no desfalque que a Nação sofreu através do controle de cambio dos dólares, a burguesia foi muito beneficiada com dólares baratos

1) Para a burguesia não era negócio aumentar a produção, porque ao obter dólares baratos, uma burguesia-lumpem parasitária que suga a renda petroleira não tinha interesse em aumentar a produção, que para eles não era rentável.

2) Porque nas expropriações e nacionalizações que foram feitas, o que a burocracia fez foi colocar estas empresas nacionalizadas nas mãos de militares, ou amigos da burocracia que não avançaram com o que seria a implementação do controle dos trabalhadores. Pelo contrário, ficaram com o dinheiro e instauraram a corrupção.

Então o que temos hoje é um aparato produtivo estagnado, de um país que viveu da renda petroleira desde a década de 50. Fazendo com que a Venezuela tenha a necessidade de importar tudo o que o país consume, entre eles os medicamentos, alimentos e todos os insumos que se possa imaginar.

 

AS: O que aconteceu então?

 

Zuleika: O governo de Maduro destruiu com todas as conquistas que o processo conquistou com Chávez, e agora nós temos uma crise bastante profunda fruto do desfalque da Nação (um deles o desfalque no cambio do dólar e outro na PDVSA). Nós, enquanto Marea Socialista, temos investigações e materiais sobre esta afirmação que estou fazendo. Estes dois desfalques, e também outros, somam mais de 500 bilhões de dólares.

Ou seja, nós poderíamos estar vivendo, mesmo sob a queda no preço do petróleo, tranquilamente.

 

AS: Atualmente como está o plano econômico do governo?

 

Zuleika: A partir de agosto o governo retirou 5 zeros da moeda, e realizando um suposto aumento salarial, que não passou de um aumento nominal, deixamos de ganhar menos de 1 dólar/dia para ganhar 30, mas que a hiperinflação não reconhecida pelo governo nos levou rapidamente a que isso fosse desvalorizado.

Agora, poucas semanas atrás, o governo acaba de anunciar um novo aumento do salario mínimo, de 1800 bolívares para 4.500 bolívares, o que são aproximadamente 6 dólares ao mês.

Toda a sociedade venezuelana está afetada por esta crise, que não é apenas econômica, mas também política. Uma vez que o governo de Maduro tem se transformado em um governo autoritarista, repressor e confiscador dos direitos democráticos, que foi uma conquista do progresso bolivariano e interpretado por Chávez como um avanço à uma democracia participativa.

Esta mesma Democracia Participativa foi confiscada pelo governo que tem cooptado organizações que foram do processo e que defenestra toda organização que surja na esquerda e que se coloque contra esta politica contrarrevolucionária de Maduro, e que vai contra todas as conquistas que conseguimos em todo o processo revolucionário e bolivariano, inclusive com Chávez na direção do governo.

 

 

SOBRE MAREA SOCIALISTA

 

AS: O que falta para Marea Socialista ter seu registro como partido? Existe alguma instrumentalização do Poder Eleitoral por parte do governo para que não possa ser feito o registro?

 

Zuleika: No governo de Maduro foi instaurada uma forma de atuação política que é como se ele escolhesse sua própria oposição…

 

AS: O que chega para nós é como se dissessem: “esses não se apresentaram nas eleições passadas, então não terão direito de disputar agora”.

 

Zuleika: Exatamente.
Eu penso que o que mais preocupa o governo não é essa direita tradicional (o que era a MUD) que também pende para o capitalismo, como faz o governo de Maduro. O que lhe preocupa é que surja, ou que se legalize, uma esquerda consciente, que enfrente e que faça uma oposição de esquerda enquanto partido legalizado.

Um exemplo simples: Nos chamamos “Marea Socialista” desde a fundação de nosso grupo em 2007, quando fomos corrente do PSUV, e quando rompemos com o partido governista e suas práticas nos foi negado iniciar o processo de legalização apontando que o nome não corresponderia a um partido político.

Como é preciso colocar três nomes num partido político na Venezuela, posso lhe dar um outro exemplo: Colocamos também o nome SOMOS. Novamente nos foi negado iniciar o processo. E logo depois surgiu a partir de um setor da burocracia um novo partido, que hoje Maduro como liderança, e se chama SOMOS.

 

AS: Vocês recorreram?

 

Zueleika: Sim. Recorremos ao Tribunal Supremo de Justiça, e no lugar de um processo jurídico correspondente, fomos vitimas de um julgamento político, no que uma fiscal do Ministério Público, em um tema que não lhe diz respeito, nos disse que não poderíamos nos chamar “Socialista”, pelo fato de que “não somos socialistas, porque rompemos com o governo”. Ou seja, o que tem acontecido conosco é uma retaliação política e uma proibição expressa de existir.

 

AS: Ou seja, é como se o governo se achasse dono da patente “socialista”.

 

Zuleika: Isso. É como se o governo tivesse patenteado a palavra “socialista”. Além de ser um ato antidemocrático que afeta as pessoas, que tira delas o direito de escolher. Não existindo outro partido socialista, o governo retira das pessoas o poder de escolher, de maneira eleitoral, candidaturas que surjam a partir da Marea Socialista. Mas isso não nos impede de seguir nos construindo como partido.

 

Entrevista realizada por Lucas Tiné
Buenos Aires, dezembro de 2018