China: o punho de ferro do PCCh e seu Estado ao serviço do capital

Por Verónica O’Kelly – Alternativa Socialista-PSOL, LIS-Brasil.

Nos últimos dias assistimos como o povo chinês se levantou fortemente contra a chamada política “Covid Zero”, que nada mais é do que um controle social extremo baseado na perseguição e repressão pelo poderoso Partido Comunista Chinês (PCCh). As primeiras mobilizações foram vistas na cidade de Urumqi, onde pelo menos 10 pessoas morreram quando não conseguiram sair de um prédio em chamas porque as barreiras “anti Covid” os impediram. A onda se espalhou rapidamente e as mobilizações irromperam em muitas cidades, incluindo as cidades populosas de Xangai e Pequim.

No momento de escrever, o punho de ferro da polícia chinesa conseguiu reprimir as mobilizações e, por enquanto, recuperar o controle, mas não sem desgaste político para um regime ditatorial como o encabeçado por Xi Jinping, Secretário-Geral do partido e presidente do país, que foi obrigado a ceder e relaxar as medidas de isolamento e distanciamento social. Da mesma forma que a multinacional taiwanesa Foxconn, sediada na cidade de Zhengzhou, teve que recuar diante da radicalização de seus mais de 200 mil trabalhadores. O poderoso povo chinês sem dúvida continuará a expressar sua força rebelde contra um Estado que, por força da repressão e do controle social ditatorial, espreme níveis extremamente altos de mais-valia com o modelo do “socialismo com características chinesas”.

A fábrica do mundo

Adam Smith, em seu livro A Riqueza das Nações, escreveu que o trabalho é à base da riqueza das nações. Então Marx apareceu para mostrar que é precisamente através do trabalho que a burguesia, a classe dominante do sistema capitalista, vê seu capital crescer e, portanto, suas fortunas, na medida em que consegue se apropriar do trabalho das massas. E é exatamente assim que o “Socialismo com características chinesas” funciona, extraindo mais-valia da classe trabalhadora em níveis históricos.

Desde a morte de Mao Tse Tung e as reformas de Deng Xiaoping no final dos anos 1970, a China iniciou o caminho da total restauração capitalista, unindo-se ao mundo globalizado e tornando-se a “fábrica do mundo”. Sua economia tem crescido vertiginosamente nos últimos 40 anos, tornando-se líder no comércio internacional, disputando mercados e estabelecendo uma feroz batalha de hegemonia com o imperialismo americano.

A China e seu plano de expansão no mercado global possui dois projetos principais: a “Nova Rota da Seda” (desde 2013) e a ” Made in China 2025″ (iniciada em 2015). Assim, o gigante asiático subiu do 23° para o 2° lugar no ranking das economias mundiais. A China produz 45% dos carros elétricos, 50% dos computadores, 80% dos painéis solares e 90% dos minerais produzidos no mundo. 150.000 empresas privadas foram registradas em 1994, aumentando para 15 milhões em 2018. Existe cerca de 500 mil empresas estrangeiras, a maioria delas é sociedades mista com empresas estatais e cooperativas nacionais. A Comissão de Supervisão e Administração de Ativos do Estado (SASAC) é uma agência governamental e o maior acionista controlador do mundo. Ele fixa o preço dos produtos, controla as exportações e nomeia os principais gerentes das empresas estatais, que são membros do Partido Comunista.

O “milagre chinês” da mais-valia

O milagre da economia chinesa não tem nada de mágico, paranormal ou divino, tem a ver com a disputa básica capital-trabalho, da qual Marx e Engels tanto falaram. A receita chinesa é longas horas de trabalho, pisoteando conquistas trabalhistas e direito, alcançando níveis de semiescravidão na maioria dos casos. Por exemplo, o bilionário chinês Jack Ma, proprietário do enorme Alibaba e filiado ao PCC, defende um horário de trabalho de 9 a 21 horas, seis dias por semana, o intitulado “sistema 996”.

A própria Foxconn, com seus mais de 200 mil trabalhadores, é a maior fábrica de iPhone do mundo, daí o nome de seu campus, “Cidade do iPhone”. Não apenas milhares de trabalhadores trabalham lá, com salários muito abaixo dos lucros multimilionários que geram, mas também uma grande parte deles vive lá. Uma das principais manifestações dos últimos dias irrompeu precisamente em resposta às condições de vida desses trabalhadores que estavam sendo forçados a dividir quartos com outros trabalhadores infectados da Covid, além do atraso no pagamento de salários. Enquanto isso, a cínica política “Covid Zero” do governo lhes negava o direito de circular nas ruas.

Assim, mesmo sem políticas sociais do tipo “Estado-Providência”, mas com um aumento na porcentagem da população empregada com longas jornadas de trabalho, a China reduziu a pobreza, ao mesmo tempo em que aumentou a desigualdade social. Em 2019, o gasto público com educação era de 3,6%, pensões de 3% e saúde de 1,8% do PIB.

Na China de hoje, os 10% mais ricos recebem mais de 40% da renda e os 50% mais pobres ficam com menos de 15%. Desde o processo de restauração capitalista, o chamado “Socialismo com características chinesas” de Deng, a economia tem crescido, juntamente com a desigualdade social. Os 10% mais ricos aumentaram sua renda em 1,230%, enquanto os 50% mais pobres aumentaram sua renda em 386%. De acordo com o relatório Hurun, em 2020 havia 696 bilionários americanos, 177 indianos, 141 alemães, 134 britânicos, 100 suíços, 85 russos e 1058 chineses.

A gigantesca mais-valia produzida por uma das maiores classes trabalhadoras do mundo, longe de estar a serviço da solução dos males que o povo chinês vive e sofre, está garantindo rendimentos milionários e históricos para um punhado de burgueses filiados ao PCCh.

O povo se rebela

Entretanto, como está acontecendo em todo o mundo, a classe trabalhadora está se levantando e lutando, tendo a juventude como a vanguarda desta rebelião. As mobilizações dos últimos dias começaram diante das universidades, mesmo em Pequim, cantando a Internacional e levantando folhas de papel em branco, que já são um símbolo de luta e repúdio ao governo.

A juventude operária chinesa se levanta e, apesar do poderoso aparelho repressivo e controlador do Estado sob o poder do PCCh, mostra que o gigantesco povo chinês está pronto para se revoltar contra a exploração ditatorial e a violência.

Um elemento muito importante desses dias de mobilizações foi a greve na “Cidade do iPhone” na imensa Foxconn. A classe trabalhadora saiu para lutar sem direção, espontaneamente e superando o rígido controle das comissões do PCCh dentro da fábrica, juntamente com o aparato repressivo do estado. Esta greve abalou a estabilidade de ninguém menos que a multinacional Apple, que viu a produção de sua joia mais valiosa, o iPhone, ameaçada. Alguns boatos dizem que, com mais um dia de greve, não haveria iPhones em dezembro.

Tudo isso, essa grande demonstração de força do povo trabalhador chinês, fez a Foxconn recuar, pagar salários e reverter medidas internas que colocavam em risco a saúde das e dos trabalhadores. Também o todo poderoso Yi Jinping e o PCCh foram forçados a ceder a esse foco rebelde e em 30 de novembro anunciaram o relaxamento das medidas da política “Covid zero”.

A “Longa Marcha” da Restauração Capitalista e a Revolução Permanente

Em outubro de 1949, após anos de guerra civil contra as tropas do partido nacionalista Kuomintang de Chiang Kai-shek, as tropas chinesas do PCCh lideradas por Mao Tse-tung, entraram vitoriosas na Praça Tiananmen, em Pequim. Mao e o PCCh lideraram uma revolução que significou um salto para milhões de homens e mulheres chinesas, mas sua característica do Bonapartismo sui generis1 foi fortalecer uma camarilha burocrática que, a partir do poder do Estado, parou o processo revolucionário, reprimiu os setores de esquerda, ocupou os organismos criados pela revolução e instalou o controle e a repressão contra qualquer crítica. Neste processo, como aconteceu na URSS e em todo o mundo, a burocracia perseguiu, difamou e aprisionou militantes da oposição de esquerda, liderados por Leon Trotsky.

O que se seguiu foi uma “Longa Marcha” pela restauração capitalista com a ascensão do burocrata Deng Xiaoping, com o “Socialismo com características chinesas” e por força de grandes derrotas como a Praça Tiananmen em 19892.

Trotsky, em seu importante livro “Teoria da Revolução Permanente”, levanta a combinação de tarefas democráticas com tarefas socialistas nos países de desenvolvimento capitalista atrasado, desnudando a incapacidade da burguesia de realizar tarefas democráticas como a independência nacional ou a reforma agrária. Estas tarefas só podem ser resolvidas por um governo de trabalhadores, liderado por um partido revolucionário que tanto expropria a burguesia como avança medidas socialistas, fortalecendo a revolução internacionalmente, tornando cada vitória nacional parte de um único processo de revolução mundial. A revolução chinesa, sob a direção do PCCh, foi detida e com os anos recuou, avançando a restauração capitalista. A teoria da Revolução Permanente se confirmou em toda a regra, infelizmente.

Esta onda de mobilizações rebeldes foi amortecida, mas tudo indica que teremos mais notícias do gigante asiático no futuro próximo. Os revolucionários do mundo têm a tarefa de apoiar e ser solidários com o corajoso povo chinês que está se levantando. Da LIS estamos a serviço desta importante tarefa que significa fortalecer a classe trabalhadora chinesa e sua luta contra a exploração e repressão do PCCh, no caminho para construir uma alternativa política socialista e democrática que avance, no sentido da Revolução Permanente, para uma sociedade sem exploração e opressão, uma verdadeira sociedade socialista.

Referencias:

https://www.infomoney.com.br/economia/china-reduz-sua-lista-de-super-ricos-para-1-305-pessoas-em-2022/

https://temas.folha.uol.com.br/desigualdade-global/asia/asia-tira-milhoes-da-miseria-mas-fosso-de-renda-se-abre.shtml

https://www.ecodebate.com.br/2022/01/03/a-china-eliminou-a-pobreza-extrema-com-muito-trabalho/

https://www.dmtemdebate.com.br/a-china-e-um-exemplo-da-americanizacao-da-desigualdade/

https://lis-isl.org/2021/07/09/china-de-la-revolucion-socialista-a-la-restauracion-capitalista/

https://lis-isl.org/2019/10/19/70-aniversario-de-la-revolucion-china-una-gran-muestra-de-musculos-para-esconder-la-crisis/#_ftn4

1Variante do Bonapartismo clássico, descrito por Trotsky. Enquanto o primeiro é típico dos governos que defendem os interesses da burguesia imperialista e usam métodos ditatoriais contra o movimento operário e de massas, o Bonapartismo sui generis é típico dos governos nacionalistas burgueses que, como o de Cardenas no México ou o primeiro Peron na Argentina, em seu tempo tiveram fortes fricções com o imperialismo sobre a distribuição da mais-valia local e para enfrentá-lo tiveram que contar com a mobilização de massas dada a fragilidade estrutural das classes capitalistas que representavam.

2Uma revolta popular, liderada pelos estudantes e posteriormente apoiada por amplos setores dos trabalhadores e do povo chinês, levou a um protesto nacional contra a burocracia e o regime político, apelando para uma abertura democrática e a participação do povo na tomada de decisões.